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II Domingo da Quaresma – Ano C

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A MESA DA PALAVRA
II Domingo da Quaresma
Itumbiara, 16 de março de 2025

“Este é meu Filho, o Escolhido. Escutai o que Ele diz” (Lc 4,1)

Caríssimos amigos

Como é bonito olhar para a multiforme expressão da tradição católica, isto é, do tesouro que chamamos “depositum fidei”, deixado por Cristo aos Apóstolos para ser transmitido de geração em geração até o fim da história. Este depósito da fé atravessou corações e afetos humanos, as mentalidades dos povos e suas culturas, a variedade das línguas e dos tempos históricos, e permanece no nosso missal como fruto da comunhão. Um vibrante testemunho da única fé transmitida por “todos aqueles que guardam a fé católica que receberam dos Apóstolos” (Canon Romano).

Ouçamos de a coleta de hoje. Ela carrega um “sotaque” ibérico, das comunidades moçárabes cujo vestígio encontramos ainda hoje na Catedral de Toledo, no renovado Rito Hispano-Moçárabe. Ouçamo-la:

I. “Ó Deus, que nos mandastes ouvir o vosso Filho amado, alimentai-nos com a vossa palavra, para que, purificado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão da vossa glória” (Coleta)

A nossa oração inicial é tomada de um prefácio do Missal Hispano-Moçárabe (Liber Mozarabicus Sacramentorum, n. 385), tradição litúrgica vigente na Península Ibérica antes ainda da ocupação muçulmana que durou cerca de oito séculos. A presença cristã na península Ibérica remonta ao tempo dos apóstolos, especialmente ao ministério do Apóstolo Tiago. Nem mesmo o domínio muçulmano apagou os traços da tradição cristã na vida do povo e na discreta presença de comunidades cristãs.

A oração nos ajuda a suplicar a Deus que nos alimente com a Palavra, com o Verbo de Deus, pois “não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Lc 4,4), como dizia Jesus ao refutar as tentações no deserto. Contemplando o mistério da Transfiguração através do testemunho das Escrituras, da Palavra transmitida na vida da Igreja, purifica-se o olhar da nossa fé e nos torna capazes de nos alegrarmos “com a visão da vossa glória” (da Coleta).

É pelo Batismo que recebemos a iluminação da inteligência da fé e o anelo de nos alegrarmos com a visão da glória. Esta oração, portanto, nos situa no momento do catecumenato que prepara os catecúmenos para receber a Iluminação. A Quaresma é caminho de conversão em vista do Batismo na noite de Páscoa, mas também nos abre o coração para a visão da glória na eternidade.

Aparece hoje o tema da Aliança que Deus faz conosco. Ele mostra o seu amor entranhado e cheio de pormenores de delicadeza, antecipando sinais consoladores da luz de sua glória para nos ajudar a superar o escândalo da Cruz.

II. “Naquele dia o Senhor fez aliança com Abrão” (Gn 15,18).

A primeira leitura narra a aliança de Deus com Abrão (Gn 15,5-12.17-18). Ante o sofrimento de Abrão pela iminência da morte sem a descendência prometida e ainda vivendo como nômade sem vislumbrar a terra que o fizera deixar Ur, o Senhor Deus se manifesta para confirmar a Sua fidelidade. Vem agora renovar pela terceira vez renovar a dúplice promessa da numerosa descendência. Vendo o sofrimento de Abrão dentro da tenda, o Bom Deus o chama para fora e ordena-lhe olhar para o alto: “Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz!”. Voltar a olhar para o céu significa recuperar a sabedoria da fé e a plena confiança em Deus, sem contar com as próprias forças. Abraão era já idoso. O autor sagrado prossegue narrando a renovação da promessa da descendência: “Assim será a tua descendência”, isto é, numerosa como as estrelas (Gn 15,5).

O autor sagrado, ao descrever a aliança de Deus com Abrão, utiliza o estilo literário das alianças entre os povos dominadores e os dominados, comumente empregado na época para determinar as obrigações dos povos sujeitos: “Eu sou o Senhor que te fez sair de Ur dos Caldeus, para te dar em possessão esta terra” (Gn 15,7). E lhe mostra a terra que possuirá. Abrão pede um sinal de como se dará a posse: “Senhor, como poderei saber que vou possui-la?” (Gn 15,8). Então tem início o ritual de aliança, o sacrifício dos animais que são cortados ao meio. Conforme a mentalidade da época os dois pactuantes deveriam passar entre as partes separadas, como que sujeitando-se ao esquartejamento caso descumprissem o acordo, a aliança. Preparados e dispostas as partes dos animais conforme o rito prescrito por Deus, Abrão aguarda Deus. Mais uma vez Deus demora: “Quando o sol ia se pondo, caiu um sono profundo sobre Abrão e ele foi tomado de grande e misterioso terror” (Gn 15,12). Este torpor e misterioso terror junto com a espessa escuridão, é sinal de que Deus está para se manifestar. O rito, a fumaça, o fogo e as brasas representavam Deus, o qual em um gesto nada comum de condescendência, aceita as consequências de não cumprir a promessa: só Deus passa por entre as partes dos animais.

Sim é Aliança, porque Deus que é fiel se compromete. Abrão não atravessa por condescendência de Deus. “Naquele dia o Senhor fez aliança com Abrão dizendo: Aos teus descendentes darei esta terra desde o rio do Egito até o grande rio, o Eufrates” (Gn 15,18). Alguns comentaristas afirmam que a extensão mostrada por Deus correspondia ao reino de Davi no auge de seu esplendor. Mais do que a terra, Deus oferece o prelúdio do reinado messiânico, cujo esplendor é Cristo.

III. “Sede meus imitadores, irmãos…” (Flp 3,17)

Abrão suportou as demoras de Deus com confiança, esperando contra toda esperança, ele é hoje nosso Pai na fé. A expectativa dele não foi decepcionada, porque Deus é sempre fiel. Paulo não espera uma terra nesta terra, nos chama a lembrarmos  que somos cidadãos do céu, concidadãos dos santos. Por isso, não nos entregamos à perdição, não desejamos ser inimigos da cruz. Não ficamos dentro da tenda aqui na terra com os olhos voltados às promessas de alegrias ou a satisfação do deus do nosso estômago, das vergonhosas alegrias terrenas prometidas nas tentações do domingo passado. Aceitamos o convite feito a Abrão de olhar para o alto, para não sermos inimigos da Cruz. E “de lá – do céu de onde somos cidadãos – aguardamos o nosso Salvador, o Senhor; Jesus Cristo” (Flp 3,20).

Assim como transfigurou o seu corpo na Santa Montanha, “ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso, com o poder que tem de sujeitar a si todas as coisas” (Flp 3,21).

Nossa esperança não é na transfiguração passageira para a qual Jesus não consentiu a Pedro armar três tendas. Aguardamos a completa renovação na ressurreição, cujo mistério começa na regeneração batismal e prossegue com o convite de Paulo: “Assim irmãos […], continuai firmes no Senhor” (Flp 4,1).

IV. “Enquanto Jesus rezava, seu rosto mudou de aparência…” (Lc 9,29)

Diz o prefácio próprio deste domingo: “Tendo predito aos discípulos a própria morte, Jesus lhes mostra, na montanha sagrada, todo o seu esplendor, e com o testemunho da Lei e dos Profetas nos ensina que, pela paixão, chegará à glória da ressurreição”.

Um autor espiritual espanhol, Francisco Fernandez Carvajal, meditando sobre estes mistérios nos ajuda a saborear as gotas de mel que antecedem a cruz e nos preparam para a plenitude da vida que nos é dada pelo Ressuscitado já nesta vida mediante a graça do Batismo. Ele começa refletindo sobre a finalidade da transfiguração a partir da doutrina dos padres.

“O fim principal da transfiguração – diz São Leão Magno – foi desterrar das almas dos discípulos o escândalo da Cruz” (Sermão 51 sobre a Quaresma, 3). Os Apóstolos jamais esquecerão esta “gota de mel” que Jesus lhes oferecia no meio da sua amargura. Muitos anos mais tarde, São Pedro ainda recordará de modo nítido esses momentos: … “quando do seio daquela glória magnífica lhe foi dirigida esta voz: ‘Este é o meu Filho muito amado, em quem pus todo o meu afeto’. Esta voz, que vinha do céu, nós a ouvimos quando estávamos com Ele no monte santo” (2 Pd 1,17-18). O nosso autor espanhol comenta que Jesus sempre atua assim com os que o seguem. No meio dos maiores padecimentos, dá-lhes o consolo necessário para continuarem a caminhar.

Quantas vezes nós memos não experimentamos essas suaves consolações do Senhor? Ora para nos preparar para a cruz vindoura, ora para nos consolar do sofrimento de alguma Cruz que nos angustiou e nos levou para dentro da tenda. Jesus nos faz olhar para o céu, ver as estrelas. As estrelas são as luzes dos justos, dos santos que brilham no firmamento da fé.

Esta centelha da glória divina manifesta na transfiguração inundou os Apóstolos de uma felicidade tão grande que fez Pedro exclamar: Senhor, é bom permanecermos aqui. Façamos três tendas… Pedro quer prolongar a situação. Mas Santo Ambrósio de Milão nos faz meditar: “Por que preparar três tendas? Sua tenda não está na terra, mas no céu. Os apóstolos ouviram e ficaram com medo. O Senhor veio, levantou-os e ordenou-lhes que não contassem a ninguém o que tinham visto” (Enarrationes in Ps. 45,2: PL 14,1188-1189).

Por isso, mais adiante, o evangelista comentará que Pedro não sabia o que dizia. Certamente, irmãos caríssimos, o que é bom, o que importa, não é estar aqui ou ali, mas estar sempre com Cristo, em qualquer parte, e vê-lo por trás das circunstâncias em que nos encontramos. Se estamos com Ele, tanto faz que estejamos rodeados dos maiores consolos do mundo ou prostrados na cama de um hospital, padecendo dores terríveis. O que importa é somente isto: vê-lo e viver sempre com Ele. Esta é a única coisa verdadeiramente boa e importante na vida presente e na outra. Vultum tuum, Domine, requiram: Desejo ver-te, Senhor, e procurarei o teu rosto nas circunstâncias habituais da minha vida.

Aproveitemos este tempo de Quaresma para sair da tenda da nossa modorra, da nossa falta de ânimo, do descoroçoamento. Elevemos os olhos para o céu: muitos astros, muitos santos nos iluminam: é possível viver uma vida nova, uma vida escondida com Cristo em Deus, pela força do nosso Batismo.

É possível, irmãos, caminhar nos nossos dias de esperança em esperança, esperando contra toda esperança, movidos pelo amor apaixonado pelo Senhor que pode transfigurar nossa existência para sermos testemunhas da Ressurreição. Não nos percamos na superficialidade de considerar a Quaresma apenas uma ocasião para fazer dieta de guloseimas. São Leão Magno já dizia a seu tempo: “Por conseguinte, amados filhos, aquilo que cada cristão deve praticar em todo tempo, deve praticá-lo agora com maior zelo e piedade, para cumprir a prescrição que remonta aos Apóstolos de jejuar quarenta dias, não somente reduzindo os alimentos, mas sobretudo abstendo-se do pecado” (Sermo 6 de Quadragesima, 1: PL 54,285).

Repito as palavras de Paulo com a mesma força e o mesmo afeto por cada um de vocês: “Assim, meus irmãos, a quem quero bem e dos quais sinto saudade, minha alegria, minha coroa, meus amigos, continuai firmes no Senhor” (Flp 4,1).

Renovemos em nós a graça do nosso batismo pedindo ao Senhor a capacidade de olhar sempre para o Céu, mantendo os pés na terra, na casa comum, na natureza que ele criou para ser o lar em que nos preparamos para ir para o céu, onde a Virgem Imaculada nos acolherá com maternal afeto.

Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.

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A Diocese de Itumbiara foi criada no dia 11 de outubro de 1966, pelo Papa Paulo VI, desmembrada da Arquidiocese de Goiânia; seu território é de 21.208,9 km², população de 286.148 habitantes (IBGE 2010). A diocese conta 26 paróquias, com sede episcopal na cidade de Itumbiara-GO.

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