A MESA DA PALAVRA
Dom José Aparecido Gonçalves de Almeida
XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM
Itumbiara, 11 de agosto de 2024
“O Pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo” (Jo 6,51)
Caros amigos, I. “… fazei crescer em nossos corações o espírito de adoção filial…” A oração coleta deste domingo, que rezamos logo após o hino de louvor, encontra-se no antigo missal chamado Sacramentário Bergomense, cujo manuscrito mais antigo remonta ao século IX [1]. Nele encontramos em forma de oração uma pilula concentrada da sabedoria espiritual do Evangelho: “Deus eterno e todo-poderoso, a quem, inspirados pelo Espírito Santo, ousamos chamar de Pai, fazei crescer em nossos corações o espírito de adoção filial, para merecermos entrar um dia na posse da herança prometida” (Missal Romano, Coleta do XIX Domingo do tempo comum).
A alusão à ação do Espírito Santo como inspirador da nossa certeza de sermos filhos de muito amados de Deus, presente no texto original do antigo sacramentário, mas ausente na segunda edição brasileira do Missal, agora é retomada com toda a força no texto latino revisto em 2008 e também está presente na tradução que usamos atualmente no Brasil.
Movida por uma especial inspiração do Espírito Santo, a Igreja reunida em oração reconhece a Deus como Pai de todos nós e lhe pede que faça crescer em nós um coração filial, de modo que mereçamos um dia tomar posse da herança prometida. Esta herança é a vida eterna que consiste em conhecer o Pai e a Jesus, que o mesmo Pai enviou para a nossa salvação. A vida eterna é semeada no tempo da nossa vida terrena e se projeta para a Jerusalém celeste, à qual somos chamados e que já pregustamos em cada Eucaristia, especialmente ao celebrarmos no domingo a Páscoa da semana.
Nesta oração litúrgica temos, pois, a glória do Pai, que consiste na vida dos homens que Ele adota como filhos em Cristo, Seu Unigênito. Temos ainda a promessa da herança eterna. Somos filhos de Deus, filhos escolhidos por Ele por pura bondade: é pelo caro preço do Sangue redentor derramado na Cruz que nosso Pai-Deus nos eleva à condição de filhos seus. E essa condição tem suas exigências: “Noblesse oblige”. Temos uma linhagem nobre, honrada, que nos obriga a proceder de uma forma adequada, à altura do nome que se tem.
E seremos capazes de atuar de acordo com a nossa condição de filhos se nos empenharmos em viver na graça de Deus, evitando todo o mal e abraçando toda a bondade.
II. “Não contristeis o Espírito Santo com o qual Deus vos marcou como com um selo para o dia da libertação” (Ef 4,30)
O encontro entre a graça e o esforço humano para viver como filho de Deus está bem ilustrado na Epístola aos Efésios proclamada como segunda leitura desta missa. O Apóstolo nos exorta a não contristar o Espírito Santo, evitando algumas atitudes contrárias à vontade de Deus e abraçando um comportamento condigno com a nossa condição de filhos.
Esta exortação nos prepara para o dia da nossa libertação. Não somos escravos, mas filhos.
“Toda a amargura, irritação, cólera, gritaria, injúrias, tudo isso deve desaparecer do meio de vós como toda espécie de maldade” (2,31). Numa homilia sobre o Evangelho de São Mateus, São João Crisóstomo assim exorta aqueles que alegam dificuldade para o domínio da própria ira: “Que desculpa tens para não dominar a tua natureza? Que pretexto aceitável podes alegar, quando de um leão fazes um homem, e tu, que és homem, consentes em converter-te em leão? […] Considera, por favor, que também a ira é uma fera. Toda a habilidade que os outros demonstram em domar os leões, demonstra-a tu, domando-te a ti mesmo e tornando mansa e pacífica essa fera. […] Nem um leão nem uma víbora são capazes de despedaçar as tuas entranhas como a ira, que as despedaça a cada momento com os seus dentes de ferro. Porque a ira não causa dano somente ao corpo, mas destrói também a saúde da alma, devorando, destroçando, dissipando toda a sua força e tornando-a incapaz para tudo” (Homilias sobre São Mateus, 4, 9).
O que ele refere ao vício capital da ira, vale para as atitudes descritas por Paulo. Nossa libertação depende de quanto empenho – com o auxílio da graça de Deus – nós deponhamos no domínio de nossos impulsos, das paixões desordenadas.
Na exortação do Apóstolo dos Gentios, além do convite a evitar comportamentos que redundam na maldade, encontramos a recomendação a pormos em prática comportamentos virtuosos, que expressam aspectos da bondade da alma do fiel: “Sede bons uns para com os outros, sede compassivos; perdoai-vos mutuamente, como Deus vos perdoou por meio de Cristo” (Ef 4,31). Paulo não se limita a recomendar bondade. Ele convida os efésios, nos convida a todos a irmos mais fundo na entrega de amor que caracteriza a nossa condição de filhos no Filho: “Sede imitadores de Deus, como filhos que ele ama. Vivei no amor, como Cristo nos amou e se entregou a si mesmo a Deus por nós, em oblação e sacrifício de suave odor” (Ef 5,1-2).
Como podemos nos livrar do mal e onde encontraremos as forças necessárias para viver como filhos de Deus em meio a tantas seduções do mal que se apresentam no nosso peregrinar terreno? Como vencer a nossa fragilidade? Esta pergunta não foge ao grande São João Crisóstomo. “Mas como nos livraremos desta calamidade? Bebendo uma bebida capaz de matar os vermes e as serpentes que trazemos dentro. E que bebida é essa, que tem uma virtude tão maravilhosa? Essa bebida é o precioso sangue de Cristo, desde que seja bebido com confiança. Só ela é capaz de curar todas as nossas enfermidades” (Homilias sobre São Mateus, 4, 9).
O precioso Sangue de Cristo nos remete à Santíssima Eucaristia, do corpo, sangue, alma e divindade de Cristo presente debaixo das espécies do Pão e do Vinho. É o viático dos peregrinos que surte o efeito desejado de remédio e de alimento quando acompanhados da confiança no Senhor.
III. “Elias levantou-se, comeu e bebeu, e, com a força desse alimento andou … até chegar ao monte Horeb” (1Rs 19,8).
Na primeira leitura, vemos o profeta Elias, exausto e desanimado, em sua jornada pelo deserto. Ele chega a pedir a morte, tamanha sua desesperança. Mas Deus, em Sua infinita misericórdia, envia um anjo que lhe oferece pão e água, fortalecendo-o para continuar sua missão. Com o toque revigorante da graça representada no pão, o profeta descoroçoado recobra coragem e retoma o caminho na confiança e obediência à vontade do Deus que o enviara em árdua missão.
Santo Agostinho comenta este episódio, dizendo: “Elias recebeu o pão do anjo e, com a força desse alimento, caminhou quarenta dias e quarenta noites até o monte de Deus. Assim também nós, comungando do Pão da Vida, somos fortalecidos para a nossa jornada espiritual até o monte santo da eternidade” (Sermão 71, 19).
Destarte, o texto veterotestamentário encontra seu pleno significado na cena evangélica em que Jesus se apresenta como pão vivo descido do céu, que nutre a vida presente com os tesouros da eternidade.
IV. “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente” (Jo 6,51)
Neste trecho do quarto Evangelho, Jesus se apresenta como o “pão vivo que desceu do céu” (Jo 6,51). Este pão não é como o maná que os antepassados comeram no deserto e morreram. É o próprio Cristo, que dá a sua carne para a vida do mundo.
Ao falar de si assim, Jesus já nos apresenta a Eucaristia como alimento dos peregrinos, como sustento dos descoroçoados e força que levanta os fracos. A Eucaristia é o alimento dos filhos para chegar ao Pai.
O mesmo São João Crisóstomo, ao falar sobre este mistério, é quem nos recorda comovido a proximidade que Deus deseja ter conosco, ainda que nossos méritos não sejam suficientes. Ele nos diz: “Deus nos deu não somente ver a Cristo, mas também tocá-lo e comer dele. Pois não desejou apenas que nos aproximássemos pela fé, mas também que, por meio de uma participação íntima, nos tornássemos um com o seu corpo” (Homilia 46,3).
Esta participação na vida escondida com Cristo em Deus, na intimidade da vida divina, exige de nós um amor à Eucaristia que se desdobre em pequenos atos quotidianos de amor. É preciso estar habitualmente em graça de Deus, procurar ao longo dos dias um encontro com o Senhor na oração e nas muitas comunhões espirituais, guardar tempo para algumas visitas ao Santíssimo Sacramento durante a semana, aprender hinos eucarísticos para suscitar com a beleza da música litúrgica uma constante oração de adoradores em espírito e verdade.
Com o coração tomado de amor pelo Senhor presente na Eucaristia, os gestos litúrgicos de veneração serão realizados com elegância corporal e a alma cheia de ternura por Quem “me amou e se entregou por mim”. “Os sacerdotes e os fiéis manifestam a fé e a adoração através de comportamentos do corpo, segundo as indicações dos livros litúrgicos ou segundo a tradição” [2].
Um outro traço de amor é a delicadeza de nos prepararmos para cada missa com um tempo de oração em que possamos entregar a Deus os frutos da terra e do trabalho humano, que se tornarão Pão da vida e Cálice da Benção. E depois de termos comungado com devoção, guardaremos um breve tempo de ação de graças após a benção final. A gratidão é uma virtude muito apreciada pelo Senhor, tanto que o sacramento pascal se chama Eucaristia: ação de graças.
Que o Senhor nos ajude a ficar bem perto de Si e de Seu Pai, a ficar nele e com Ele.
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.
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[1] Sacramentarium Bergomense. Manoscritto del seculo IX della Biblioteca di S. Alessandro in Colonna in Bergamo trascritto da Angelo Paredi con l’aggiunta di tavole comparative dei principali sacramentari ambrosiani e romani compilate da Giuseppe Fassi. Edizioni «Monumenta Bergomensia», Fondazione Amministrazione provinciale, Bergamo, 1962, XXXII-560 pages in-8° (17 sur 24 cm.). [2] Sínodo dos Bispos. XI Assembleia Geral Ordinária. A Eucaristia: Fonte e Ápice da Vida e da Missão da Igreja. Instrumentum laboris, n. 67).