“Este mistério é grande e eu o interpreto em relação a Cristo e a Igreja” (cfr. Ef 5,32).
São Paulo usa duas metáforas profundas para retratar a ligação que há entre a Igreja e Cristo. Uma das metáforas é o matrimônio cristão. Na Carta aos Efésios capítulo 5 ele alcança as alturas do amor sacrifical ao apontar a necessidade do sacrifício do marido pela esposa como aquele “que ama o seu próprio corpo” por que “ninguém jamais odiou ao próprio corpo (cfr. Ef 5,28-29). O corpo é a segunda metáfora que São Paulo usa. A Igreja, diz ele, é o Corpo de Cristo. Na carta aos Colossenses, a metáfora do Corpo abrange a Igreja e o Cristo. Ele a cabeça, ela o corpo (cfr. Cl 1,18). Na carta aos Efésios, a Igreja Corpo é a plenitude de Cristo (cfr. Ef 5,23).
Nos habituamos a interpretar esta expressão de São Paulo em chave espiritual: o corpo místico. O Papa Bento XVI explicou a mudança da compreensão do termo na passagem do tempo através da Patrística e da teologia medieval.1 Entretanto, há uma dimensão realmente corpórea da Igreja, visível, acentuadamente recordada pelo Concílio de Trento em contraposição à interpretação marcadamente espiritual da teologia reformada. O Corpo de Cristo é a Igreja. Vejamos. O mistério da encarnação é o centro do universo criado. “Tudo existe por ele e sem ele nada se fez de tudo o que foi feito” (Jo 1,3). Ele é o Verbo que se fez carne (Jo 1,14). Ao assumir a nossa carne, Ele “redimiu as corruptas criaturas-criadoras, os homens, de maneira adequada a esse aspecto da sua estranha natureza”2. A união da natureza divina do Verbo com a nossa natureza humana a Igreja chama de união hipostática, inseparável, inquebrável, sem confusão: “Um só e mesmo Cristo, Senhor, Filho Único, que devemos reconhecer em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação. A diferença das naturezas não é abolida pela sua união; antes, as propriedades de cada uma são salvaguardadas e reunidas numa só pessoa e numa só hipóstase” (cfr. CIC, n. 467).
O Cristo é Deus e homem, homem e Deus. Desse modo, unida à sua natureza humana está todo homem que mergulha e emerge nas águas mais potentes que as águas primordiais, as águas do batismo. No Batismo “todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo” (cfr. Gl 3,27). É assim que a carne de Cristo regenera a nossa carne mortal e sua divindade diviniza nossa alma imortal. Dessa mesma natureza é a Igreja, sua esposa fecunda. Feita de carne e alma, matéria e espírito, da carne do homem decaído, redimido pela carne do Verbo que enviando o Espírito vivificante faz o homem mortal viver eternamente. Por isso, ela tem uma “alma”, o Espírito vivificante. 1O termo “Corpus mysticum” ou Corpo místico nos Padres da Igreja não tinha o mesmo significado que tem hoje. Significava que aquele “algo” pertencia ao mistério, ao âmbito do sacramento, “ou seja, com o termo ‘corpus mysticum’ encontrava expressão o corpo sacramental, a presença corpórea de Cristo no sacramento. Isso (o sacramento), segundo os Padres, nos foi dado para que nos tornemos ‘corpus verum’ (verdadeiro corpo), corpo real de Cristo (a Igreja). As mudanças no uso linguístico e nas formas de pensamento fizeram com que na Idade Média os significados se invertessem, conforme comprovou Henry de Lubac em sua pesquisa. “Com ‘corpus verum’ (verdadeiro corpo), entendeu-se, assim, o sacramento, enquanto ‘corpus mysticum’ (corpo místico) compreendeu-se a Igreja, entendendo-se então por ‘místico’ não mais o significado de ‘sacramental’, mas o de místico”, espiritual (cfr. RATZINGER, J. Introdução ao Espírito da liturgia. 4ed. Trad. Silva Debetto C. Reis. São Paulo: Loyola, 2015, p. 76-77). 2TOLKIEN, J.R.R. Árvore e folha. Trad. Ronald Eduard Kyrmse. São Paulo, Martins Fontes, 2013, p.46.
A Igreja, esposa do Verbo, têm em comum com ele a carne e o sangue porque nascida do seu costado aberto na cruz ela vive de seu amado esposo. O erro dos gnósticos, dos cátaros e dos puritanos de todos os séculos foi o de esquecer a natureza corpórea da Igreja, sua dimensão humana. A fé católica, professada sobre a fé dos apóstolos, crê a Igreja fundada por Cristo sobre Pedro Una, Santa, Católica e Apostólica. Uma Igreja feita de homens redimidos e capazes de perfeições sempre maiores. Porém, não esqueçamos a carne da Igreja ainda no caminho de perfeição. Não é possível amar uma igreja ideal, construída com ideias lindas porque “se alguém não ama o irmão que vê, não pode amar a Deus a quem não vê” (cfr. 1Jo 4,20). Ou seja, se não se ama a Igreja real em sua carne humana não será possível amar os irmãos na eterna bem-aventurança na qual não haverá nem mancha, nem defeito, nem ruga (cfr. Ef 5,27) porque os bem-aventurados de amanhã são os cristãos militantes de hoje. Dizendo de maneira mais direta: é preciso amar o Papa, o Bispo, o Pároco, o irmão de comunidade. Não de longe como quem não quer contato pessoal, mas no relacionamento de pessoa a pessoa, de tu a tu, de modo pessoal e direto.
Até que se complete o número dos redimidos, será preciso caminhar no mundo entre “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem” (cfr. GS, n. 1). Será preciso olhar as feições humanas da nossa Mãe, falo da Igreja, e amá-la porque ela reflete não somente o semblante do Cristo glorioso, “o mais belo dos filhos dos homens” (cfr. Sl 44,2), mas também a face do homem desta terra. É justamente esta face que precisa ser encontrada, salva, transfigurada e redimida, pois “não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história” (cfr. GS, 1).
Disse o Papa Francisco: “é preciso abraçar as suas ‘manchas e rugas’ para amá-la como ela é3” assim como amamos nossa mãe em casa, às vezes idosa, doente, cheia de defeitos, mas não a trocamos por nada. Assim como na família não há uma mãe ideal, mas a mãe concreta feita de carne e osso, assim também a igreja ideal existe só na minha e na sua cabeça muitíssimo menor, menos bela e pujante que a nossa verdadeira mãe com suas exigências. Amemos nossa mãe que é “osso dos nossos ossos, carne da nossa carne” (cfr. Gn 2,23) e ao mesmo tempo é esposa de Cristo vestida de seu esplendor cheia de sua grandeza e beleza, resplandecente de sua santidade e doçura.
Pe. Luis Fernando A. Ferreira.
1 – O termo “Corpus mysticum” ou Corpo místico nos Padres da Igreja não tinha o mesmo significado que tem hoje. Significava que aquele “algo” pertencia ao mistério, ao âmbito do sacramento, “ou seja, com o termo ‘corpus mysticum’ encontrava expressão o corpo sacramental, a presença corpórea de Cristo no sacramento. Isso (o sacramento), segundo os Padres, nos foi dado para que nos tornemos ‘corpus verum’ (verdadeiro corpo), corpo real de Cristo (a Igreja). As mudanças no uso linguístico e nas formas de pensamento fizeram com que na Idade Média os significados se invertessem, conforme comprovou Henry de Lubac em sua pesquisa. “Com ‘corpus verum’ (verdadeiro corpo), entendeu-se, assim, o sacramento, enquanto ‘corpus mysticum’ (corpo místico) compreendeu-se a Igreja, entendendo-se então por ‘místico’ não mais o significado de ‘sacramental’, mas o de místico”, espiritual (cfr. RATZINGER, J. Introdução ao Espírito da liturgia. 4ed. Trad. Silva Debetto C. Reis. São Paulo: Loyola, 2015, p. 76-77).
2TOLKIEN, J.R.R. Árvore e folha. Trad. Ronald Eduard Kyrmse. São Paulo, Martins Fontes, 2013, p.46.
3cfr. https://www.acidigital.com/noticia/60163/papa-pede-que-estudo-da-historia-abandone-a-concepcao-angelica-daigreja