A MESA DA PALAVRA
III Domingo da Quaresma
Itumbiara, 23 de março de 2025
“Se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo” (Lc 13,5).
Caríssimos amigos,
A Liturgia deste Terceiro Domingo da Quaresma insere-nos no coração do itinerário quaresmal, que é fundamentalmente um caminho de conversão, de retorno a Deus, em uma dupla perspectiva. De um lado, na perspectiva a restauração da vida da graça nos fiéis batizados, mediante a penitência, que nos faz voltar a caminhar em novidade de vida. Sob outra perspectiva, se apresenta também como um momento da preparação mais intensa dos catecúmenos para o sacramento do Batismo e a graça do Espírito de Adoção filial. Nesse contexto fica mais fácil compreender o sentido da oração coleta, tomada do Sacramentário Gelasiano (sec. V-VIII), que hoje a Igreja coloca nos lábios dos sacerdotes, pelos quais Cristo reza ao Pai. Ouçamo-la uma vez mais.
I. “Ó Deus, autor de toda misericórdia e bondade, que indicastes o jejum, a oração e a esmola como remédio contra o pecado, acolhei benigno esta confissão da nossa humildade, para que, reconhecendo as nossas faltas, sejamos sempre regenerados pela vossa misericórdia”.
Embora sejamos pobres pecadores, o nosso Deus, que é “autor de toda misericórdia e de toda a bondade” não nos abandona à amarga solidão da nossa culpa. Ele nos oferece o consolo da sua misericórdia, como um dia ofereceu à mulher samaritana a água que purifica e regenera, ou seja, o Espírito Santo, que fluiria do seu lado aberto no alto da Cruz. À beira deste poço de Sicar, que é hoje a nossa Catedral, Ele nos concede também a nós “a água viva da graça à humanidade sedenta”: é assim que nos tornamos “templo vivo” do amor de Deus.
Deus mesmo nos indica “o jejum, a oração e a esmola como remédio contra o pecado”. E através do arrependimento manifestado também nesta santa liturgia, Deus nos prepara para sermos “sempre regenerados pela vossa misericórdia” (da Coleta).
Os ritos da iniciação à vida cristã dos adultos, após uma adequada catequese, preveem a realização do tempo da Purificação, que se dá no III, IV e V domingos da Quaresma, de modo que o catecúmeno possa ser batizado e crismado na Noite de todas a mais bela: a Vigília Pascal. Neste terceiro Domingo a Liturgia emoldura o primeiro escrutínio. A Igreja chama os que pediram o Batismo que cultivem “a vontade de adquirir um sentido profundo de Cristo e da Igreja”, progredindo “no conhecimento de si mesmos, no sincero exame da consciência e na verdadeira penitência”, para que o arrependimento dos pecados os prepare para o Batismo. A Igreja, por sua parte, reza sobre os eleitos as orações e o exorcismo, fruto da imensa compaixão de Deus por nós. Nesse exorcismo, a Igreja roga ao Senhor que volva o Seu olhar amoroso aos eleitos que desejam receber a adoção filial. E roga ainda para que os eleitos, “livres da servidão do pecado e do pesado jugo do demônio, recebam o suave jugo de Cristo”. Os catecúmenos, após esta oração não permanecem na celebração eucarística. Dos mistérios sagrados participarão quando tiverem recebido a graça do Batismo. Extra omnes.
Percorrendo o caminho da conversão, da restauração interior, da reparação das culpas, descobrimos a beleza espiritual do jejum, da oração e das obras da caridade fraterna. Quando o nosso caminho quaresmal ademais de um anúncio litúrgico, se converte em uma experiência vital, acontece então um milagre espiritual: o nosso egoísmo é derrotado e a “dureza da mente e do coração” é quebrantada. É o milagre da contrição do coração que reclama as águas do batismo ou, para os já batizados, as lágrimas da penitência.
II. “Eu vi a aflição do meu povo que está no Egito … Desci para libertá-los…” (Ex 3,7.8)
Na primeira leitura (Ex 3,1-8a.13-15), tirada do livro do Êxodo, o autor sagrado narra que, enquanto apascenta o rebanho, Moisés vê algo de extraordinário. Ele vê uma sarça que embora arda no fogo, não é consumida pelas chamas. Na sarça ardente é o próprio Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó quem aparece a Moisés. Não se trata de um ídolo, de uma criatura venerada como se fora um deus, mas ao qual se pode dar um nome (isto é, dominar magicamente). Não é um ídolo a quem os fracos se prosternam como que se inclinando diante da própria precariedade, perante uma caricatura da divindade. Ele é o Deus de Israel, o Senhor da história, o Deus das promessas. E esse Deus revela seu Nome – “Eu Sou” – a Moisés, conferindo-lhe a missão de anunciar aos hebreus escravizados no Egito que Ele ouvira o clamor dos oprimidos.
“Eu Sou Aquele que Sou” (Ex 3,6.14). Assim, o Senhor se revela a Moisés como um Deus tão transcendente ao homem que remove toda confiança e acesso fácil. Mas é, ao mesmo tempo, tão próximo do homem que é capaz de sentir a miséria do seu povo e decide pela sua libertação. “Eu sou aquele que sou!”. O homem não pode compreendê-lo e dominá-lo, mas ainda assim Ele será o redentor, o guia, a segurança. Em primeiro lugar, de Israel, que será redimido com o êxodo, e também de cada homem, quando o “Aquele que eu sou” se revelar em Jesus, e o próprio Jesus proclamar: “Eu sou”.
Tão próximo de nós, que dEle nos podemos aproximar: “Desci para libertá-los das mãos dos egípcios e fazê-los sair daquele país para uma terra boa e espaçosa, uma terra onde corre leite e mel” (Ex 3,8). Em Jesus, Javé Salvador, mais que se tornar próximo, Deus se torna um de nós. Mais do que uma terra prometida, ele nos oferece os prados celestes.
Não é apenas o cumprimento da promessa a uma coletividade de eleitos. Ele se manifesta de muitos modos também na vida de cada um de nós. Mas, para reconhecer a Sua presença amorosa e compassiva, é necessário que – como pedimos na coleta – nos aproximemos dEle conscientes da nossa miséria e com profunda reverência. Do contrário não conseguimos entrar em comunhão com Ele.
Já o salmista, no Salmo 102, nos ajuda a compreender, de um modo mais elevado, o tipo de proximidade divina: “Pois ele te perdoa toda culpa, e cura toda a tua enfermidade; da sepultura ele salva a tua vida e te cerca de carinho e compaixão”. Ele desce até nós para nos elevar até Ele. Vale a pena determo-nos mais longamente meditando no salmo 102 inteiro para saborear o imenso amor compassivo de Deus.
III. “… todos foram batizados em Moisés, sob a nuvem e pelo mar”: 1Cor 10,1-6.10-12
No trecho da primeira epístola aos Coríntios hoje proclamada, Paulo recorda a nuvem e a passagem do mar Vermelho, que são figuras do batismo; o maná e a água da rocha, que são figuras da Eucaristia, para exortar os cristãos de corinto à humildade. Estes sinais milagrosos que acompanharam o povo judeu no seu caminho pelo deserto já indicavam de algum modo uma relação com Jesus Cristo: em certa medida já a continham e ofereciam. Os coríntios não podem pretender uma pelagiana autonomia em relação a Deus. Ninguém é capaz de se salvar por conta própria.
Paulo resume em poucas palavras os principais acontecimentos do êxodo: os libertos de então se enfadaram do Deus libertador cometendo os vis pecados da: idolatria, fornicação (cf I Cor 10,7-8). Do mesmo perigo estão ameaçados os coríntios: também entre eles, já justificados pelo batismo se dão casos de fornicação (c. 5), de porneia e idolatria (caps. 8-10). Para a salvação, não basta a ação de Deus; é indispensável a colaboração humana. O Apóstolo nos diz que “estas coisas lhes aconteceram para servir de exemplo e foram escritas para a nossa instrução” (v. 11) como admoestação “a fim de que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram” (v. 6). Ele as relata como advertência para a sua Igreja de Corinto, tão permeada pela rebelião e pela murmuração, pela confiança e pela reivindicação dos próprios méritos, e exposta à infidelidade ao dom do Evangelho e da graça. É para nós um exemplo e uma razão séria: sem uma adesão interior, feita de fé e de obras, nenhum ato sagrado, nenhuma comunhão com os sacramentos pode verdadeiramente salvar-nos.
Mas prossigamos com as palavras de Jesus. Elas parecem particularmente duras hoje.
IV. “Se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo” (Lc 13,3)
Caríssimos irmãos: Paulo se serve dos fatos da história de Israel, do êxodo para admoestar os coríntios. Jesus, no entanto, utilizou dois acontecimentos daqueles dias. Para uma certa doutrina da retribuição, frequente no ensinamento dos homens religiosos e na mentalidade comum, associa as desgraças a sinais de castigos divinos. Jesus não acolhe esta doutrina no seu ensinamento. Uma desgraça não é sinal de castigo divino para os que são atingidos, mas por providente desígnio da Sabedoria divina, a reflexão sobre o fato se converte em apelo à conversão para os sobreviventes. Somos todos pecadores, e se Deus não nos feriu é porque espera frutos que resultem de verdadeira penitência, como nos indica a parábola da figueira. Em Mt 21,18-19 e Mc 10,12-14 também se fala de uma figueira, mas neles a árvore é símbolo da esperança de Israel, enquanto em Lucas é símbolo da humanidade inteira, da esperança na salvação da humanidade inteira.
A mensagem de Jesus é clara: sem conversão se perece, se morre. E todos nós precisamos disso, não apenas aqueles a quem insistimos em julgar. Não há necessidade de se iludir. A ruína que nos sobreviria não seria apenas material: seria a ruína definitiva e total, o fracasso de toda a nossa vida, irrevogavelmente. Seria o castigo pela esterilidade, por uma existência sem frutos, na qual o plano divino não se realizou. Este é o significado da figueira estéril. A ação de arrancar a árvore pela não produção de frutos equivale à morte eterna. Esta porém não é um castigo de Deus. É antes causada por nossas escolhas, pela nossa recusa de viver uma vida escondida com Cristo em Deus.
No entanto, o Pai é um Deus bom e compassivo, não quer a morte da figueira. Jesus é aquele o intercessor, Aquele que vem para nos salvar da morte eterna com o seu mistério pascal, cujos frutos haurimos nos sacramentos pascais. Deus é paciente: a própria Quaresma que vivemos, e na qual a exortação a mudar de vida se repete de forma tão intensa e prolongada, é um sinal desta paciência divina. Mas não devemos ignorar as palavras que o patrão paciente diz ao viticultor na parábola: “Se a árvore não der fruto, tu a cortarás”.
Desejo concluir esta reflexão com um trecho de uma profunda reflexão de São Paulo VI sobre a necessidade da penitência e conversão, muito oportunos para esta nossa quaresma. Fala da comunhão dos santos no combate espiritual da quaresma. Não estamos sós.
“Além disso, sendo a Igreja intimamente ligada a Cristo, a penitência de cada cristão tem também uma relação própria e íntima com toda a comunidade humana: não só é no seio da Igreja que ele recebe, no Batismo, o dom fundamental da “metanóia”, mas este dom é restaurado e revigorado, naqueles membros do corpo de Cristo que caíram no pecado, através do Sacramento da Penitência, «recebem da misericórdia de Deus o perdão das ofensas cometidas contra ele e juntos se reconciliam com a Igreja, a quem infligiram uma ferida com o pecado e que coopera na sua conversão com a caridade, o exemplo e a oração». Finalmente, é na Igreja que a pequena obra penitencial imposta individualmente no Sacramento se torna participante de maneira especial na expiação infinita de Cristo, enquanto, por uma disposição geral da Igreja, o penitente pode unir intimamente à própria satisfação sacramental todas as outras ações, todos os sofrimentos e todos os sofrimentos. Desta forma, a tarefa de levar a morte do Senhor no corpo e na alma afeta toda a vida do batizado, a todo instante e em cada sua expressão”.
“A tarefa de levar a morte do Senhor no corpo e na alma” é o caminho da nossa felicidade eterna que passa pela Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor, que só compreenderemos ao nos encontrarmos face-a-face com Deus na eternidade.
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.