A MESA DA PALAVRA
Dom José Aparecido Gonçalves de Almeida
Missa In coena Domini
Quinta-feira Santa, 28 de Março de 2024
Eis o Pão da Vida, eis o Pão do Céu
Antes de mais, saúdo todos os presentes nesta Igreja Catedral, mãe de todas as igrejas
desta nossa Diocese de Santa Rita do Paranaíba, de Itumbiara, saúdo o nosso querido Cura, Pe. José Luiz. Ofereço esta Eucaristia tão especial para nós pelas necessidades de nossa Igreja diocesana, de nossas famílias, de nossas comunidades. Apresento ao Senhor neste altar as alegrias e os sofrimentos dos idosos, das crianças e de todos aqueles que por alguma razão não podem hoje estar aqui conosco.
Caros amigos, estes são dias especiais. Esta é a Semana de todas a mais santa. Hoje de
manhã celebramos o aniversário da instituição do Sacerdócio ministerial, intimamente ligada com a instituição do Santíssimo Sacramento da Eucaristia. De manhã, com a presença de todos os padres da nossa diocese, nos lembrávamos enlevados e com profunda gratidão a maravilha da unção espiritual que os sacerdotes recebemos na ordenação. Nessa celebração pude abençoar os óleos dos enfermos e dos catecúmenos e, junto com os padres, consagrar o Santo Crisma. Agora, celebrando o aniversário do mandato novo, da Eucaristia, abrimos a magna Liturgia do Tríduo Pascal. É uma unidade litúrgica que se desdobra em três ações distintas mas inseparáveis. O primeiro ato é a Missa in Caena Domini, na qual se celebra solenemente a instituição da Eucaristia. O segundo ato é a celebração da Santa Cruz, da Sextafeira Maior, da morte do Senhor. E a liturgia vai acompanhando a sepultura do Senhor e a explosão de vida na noite santa da Ressurreição. Nela celebraremos a mãe de todas as Vigílias.
Na tarde desta Quinta-Feira Santa se revive o mistério de Cristo que se oferece a nós
no pão partido e no vinho derramado, antecipando de modo litúrgico o sacrifício redentor do Calvário. No fim desta celebração não haverá a costumeira bênção final. Esta ação litúrgica se conclui dando lugar à adoração da Eucaristia colocada em lugar à parte, porque amanhã as nossas igrejas, com a celebração da Cruz, entrarão no grande silêncio, no Sabado em que o Deus redentor Humanado assume a nossa morte e descansa. É o grande sábado do descanso dos trabalhos da redenção.
I. “Comereis a carne nessa mesma noite, assada ao fogo, com pães ázimos e ervas amargas”(Ex 12,8).
O autor do Êxodo põe diante dos nossos olhos a instrução de Deus de como celebrar o
ritual da Páscoa. Não se trata apenas de um rito religioso, mas de uma ação litúrgica
incrustrada na dura vida do povo eleito, que Deus quer libertar da escravidão do Egito. Mais ainda, a ação litúrgica é uma ação libertadora, faz parte dos atos libertadores que Deus suscita no coração de seu povo. “Este dia – diz o Senhor a Moisés – será para vós uma festa memorável em honra do Senhor, que haveis de celebrar por todas as gerações, como instituição perpétua” (Ex 12,14).
A Ceia da nova Aliança, cuja origem hoje celebramos, se explica no quadro ritual da
Ceia judaica. E as palavras do Senhor dos Exércitos “festa memorável em honra do Senhor,
que haveis de celebrar por todas as gerações” parecem ter sido retomadas em toda a
profundidade de significado nas palavras de Jesus ao instituir a Eucaristia: “E depois de dar graças, partiu-o e disse: Tomai e comei, isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em memória de mim. Do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: Este cálice é a nova aliança, em meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim” (1Cor 11,24-25).
Nas palavras transmitidas por são Paulo são provavelmente a tradição mais antiga do
relato eucarístico também conhecido nos sinóticos com alguma variação. Mas aqui vale a
pena ressaltar que quando compreendemos a intenção do Deus libertador ao instituir a ceia
pascal judaica, não fica difícil perceber o paralelismo da revelação da salvação operada por
Cristo. A gesta libertação do Egito dá lugar ao caminho de libertação radical percorrido por
Jesus na via do calvário até chegar à exaltação na Santa Cruz. A ceia pascal celebrada por
Israel como início da saída da escravidão, permite compreender a intenção de Jesus ao instituir a Ceia no contexto do Lava-pés e da sua subida ao Calvário. Neste contexto, irmãos, é fácil perceber que a Eucaristia cristã não é um rito meramente simbólico, mas o passo central da perfeita libertação das garras do pecado e da morte.
Poderíamos ainda continuar a refletir recordando dois grandes prodígios realizados por
Deus na travessia do deserto, na passagem da escravidão do Egito para a árdua liberdade:
trata-se do maná caído do céu e da água que brotou da rocha. Estes dois prodígios também se relacionam com a Eucaristia.
Pela pluma do autor sagrado, o Espírito Santo diz: “lembra-te do caminho por onde o
Senhor teu Deus te conduziu”. Nessa passagem pelo deserto, o povo peregrino, sem ter como providenciar com as próprias forças o pão e a água, clamou a Deus. E Deus ouviu o seu povo quando os clamores se uniram ao desejo de fidelidade à Palavra. E fez jorrar a água da rocha, alimentou o povo com o maná. Na rocha, a Igreja sempre viu Cristo, de cujo lado aberto saíram sangue e água, a fonte dos sacramentos. No maná caído do céu a imagem antecipada dAquele que se proclamou o Pão da Vida, o verdadeiro Pão vivo descido do céu. No meio da aflição, da fome e da sede, o povo inerme clamou e recebeu do céu a resposta para sua fome e sua sede. Nesta passagem pelo deserto vemos uma parábola da nossa existência cristã.
Quando os acontecimentos parecem nos humilhar e nos obrigam a perceber a nossa
insuficiência, quando a enfermidade e as crises parecem quebrar a nossa esperança, Deus nos ouve, nos sacia, nos alimenta. As dolorosas experiências pelas quais passamos, nos fazem lembrar que o Deus consolador vem em nosso auxílio, e vem como Aquele que serve. Ele vem lavar os nossos pés em cada trecho do nosso caminhar terreno. O seu auxílio ilumina o sofrimento e lhe dá um sentido redentor, e a passagem por ele adquire um sabor de vitória.
Deus caminha com o seu povo, atravessa com ele o deserto.
O gesto do lava-pés tem uma gritante eloquência. Fala por si. Nosso Deus se fez
homem, assume a nossa fragilidade, toma sobre si as nossas dores, quer nos salvar. Mas não se contenta em dar a salvação como se fosse um dom, ou uma esmola. Deus perdeu a cabeça por nós. Por meio de seu Filho, Verbo eterno, Deus se serve dos joelhos humanos para prostrar-se diante da miséria da nossa humanidade. O Criador se ajoelha ante a criatura. Guy de Guy de Maupassant diz de modo lapidar: “O homem é Deus para Deus”. Deus de fato se prostra ante nós.
A Eucaristia não é triunfalismo, é Deus que se faz homem e agora se nos dá sob as
espécies do Pão e do Vinho.
Nossa Eucaristia não é rito, é encontro com o Senhor. E para este encontro é preciso
iniciar a travessia do deserto da penitência.
II. “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente” (Jo 6, 51).
Nas palavras de Jesus reportadas pelo Apóstolo, ao falar de pão ele alude à ceia, ao
falar da carne e depois também do sangue, alude à oferta na cruz. “Voltemos agora ao gesto de Jesus na Última Ceia. O que aconteceu naquele momento? Quando Ele disse: isto é o meu corpo, que é entregue por vós; isto é o meu sangue, derramado por vós e pela multidão, o que acontece? Neste gesto, Jesus antecipa o acontecimento do Calvário. Por amor, Ele aceita toda a paixão, com a sua dificuldade e a sua violência, até à morte de cruz; aceitando-a deste modo, transforma-a num gesto de doação. Esta é a transformação de que o mundo mais necessita, porque o redime a partir de dentro, abrindo-o às dimensões do Reino dos céus” (Bento XVI, 2011).
Aqui a oblação de Jesus dá sentido aos sofrimentos humanos, que, de condenação se
convertem em passagem, páscoa, para uma vida nova: a vida eterna. Vida esta que tem seu início e se edifica aqui na história, projetando-se para além da morte. Receber a comunhão é receber sacramentalmente o céu aqui na terra.
Alimentar-se do Pão Eucarístico é nutrir-se de eternidade, da comunhão com aquela
vida escondida com Cristo em Deus. Tornamo-nos divinae naturae consortes, participantes
da vida divina, daquela vida de amor do seio da Trindade Santíssima. O realismo das palavras do Apóstolo, como o de Jesus no discurso sobre o pão da vida, não deixa espaço para dúvidas sobre a identidade entre o Santíssimo Corpo de Jesus e o Pão Eucarístico.
Podemos dizer que tudo parte do coração de Cristo, que na Última Ceia, na vigília da
sua paixão, agradeceu e louvou a Deus e, deste modo, com o poder do seu amor, transformou o sentido da morte que estava a se aproximar. O fato de que o Sacramento do altar tenha assumido o nome «Eucaristia» — «ação de graças» — expressa precisamente isto: que a conversão da substância do pão e do vinho no Corpo e Sangue de Cristo é fruto do dom que Cristo fez de si mesmo, dom de um amor mais forte do que a morte, Amor divino que o fez ressuscitar dos mortos.
Eis por que a Eucaristia é alimento de vida eterna, Pão da vida. Do coração de Cristo,
da sua «oração eucarística» na vigília da paixão, brota aquele dinamismo que transforma toda a realidade nas suas dimensões cósmica, humana e histórica. Tudo procede de Deus, da onipotência do seu Amor Uno e Trino, encarnado em Jesus. Neste amor está imerso o coração de Cristo; por isso Ele sabe agradecer e louvar a Deus também perante a traição e a violência, e desta forma muda as coisas, as pessoas e o mundo.
Esta conversão – já dizia Bento XVI – “é possível graças a uma comunhão mais forte
que a divisão, a comunhão do próprio Deus. É bonita e muito eloquente a expressão «receber a comunhão» referida ao gesto de comer o Pão eucarístico. Quando realizamos este gesto, entramos em comunhão com a própria vida de Jesus”.
Ouvimos ainda há pouco, na segunda Leitura, aquelas palavras do apóstolo Paulo,
dirigidas aos cristãos de Corinto: «O cálice da bênção que benzemos não é a comunhão do
sangue de Cristo? E o pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão» (1 Cor 10, 16-17). Deus e homem verdadeiro é Jesus realmente presente debaixo das espécies do pão e do vinho.
Ao comungarmos, portanto, entramos em comunhão com Deus e com os homens.
Comungamos com os homens também, com os seus sofrimentos, com as suas alegrias.
Entramos em comunhão com Jesus, o Bom Samaritano enviado pelo Pai para sanar as feridas humanas. Tornamo-nos mais profundamente irmãos de todo homem e de toda a mulher. A Comunhão não nos permite ignorar a dignidade humana ferida pelo pecado, pela discórdia, pelas dissensões, pela opressão de um homem por outro… há pecados que bradam aos céus… e com mais gravidade ainda se se trata de cristãos desprezando outros irmãos.
Este ano teremos eleições municipais e parece-nos possível prever embates políticos
com a tão decantada polarização. Aqui vai o meu alerta que sai do coração de pastor. É preciso evitar trazer a vida eclesial as contraposições que se dão no debate político ideológico. A nossa família eclesial nasce da Eucaristia, da comunhão entre pessoas que pensam diferente e que assumem posições legitimamente divergentes em campo social, politico, econômico.
Tal transposição de conflitos nos faria sofrer muito, perder na vida concreta a comunhão que desejamos na celebração da Eucaristia. A Eucaristia não é mero rito. É comunhão de um povo amado pelo Senhor, liberto dos pecados e determinado por mandato do Senhor a amar até os inimigos.
III. A nossa fé no Mistério Eucarístico nos consola.
O sacrifício eucarístico é uma memorialis repraesentatio não apenas da Ceia, mas
também do sacrifício redentor do Senhor. Não apenas presença real, mas também um
sacrifício que nos torna contemporâneos ao sacrifício do Calvário. Os efeitos do Sacrifício do Calvário se derramam sobre o mundo inteiro cada vez que um sacerdote com e em nome de toda a Igreja celebra a Eucaristia, ainda que sem presença de povo. E os frutos da comunhão sacramental também podem ser alcançados pelo desejo ardente de receber a Jesus presente no sacramento. Trata-se da comunhão espiritual.
Hoje, esta Eucaristia celebrada, oferecida no altar da nossa igreja mãe, será adorada
com discrição, quase antevendo o luto da Esposa de Cristo no dia de amanhã. Hoje o nosso
coração de pastor se une aos sofrimentos de tantos irmãos que noutras circunstancias estariam aqui conosco. E como não nos lembrarmos de Dom Antônio Fernando Brochini? Que o Senhor lhe conceda participar exultante na liturgia celeste.
Que a Virgem Mãe Aparecida interceda por todos nós e nos ensine a ser adoradores
em espirito e verdade. Que Santa Rita, nossa Padroeira interceda por nós