A MESA DA PALAVRA
Dom José Aparecido Gonçalves de Almeida
II Domingo da Páscoa
Dominica in Albis seu De Divina Misericordia
7 de abril de 2024
“Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (Jo 20,29) Caríssimos irmãos, Este Domingo da Oitava da Páscoa, também chamado Dominica in albis, tem como antífona de entrada o seguinte verso: “Quasi modo geniti infantes, rationabile, sine dolo lac concupiscite, ut in eo crescatis in salutem, alleluia” (1 Pd 2,2). “Como criancinhas recémnascidas, desejai o leite legítimo e puro, que vos vai fazer crescer na salvação, alleluia”.
As duas primeiras palavras desse introito deram nome ao personagem Quasímodo do romance “Notre Dame de Paris”, escrito por Victor Hugo. Ele, embora anticlerical bem convicto, sequaz do deísmo e do espiritismo, conhecia muito bem a doutrina e a liturgia católica. A tal ponto que soube usar as palavras latinas do texto acima para caracterizar o personagem principal desse Romance, Um menino nascido com uma notável deformação física, descrita como “uma enorme verruga que cobre seu olho esquerdo” e “uma grande corcunda”, foi abandonado ainda criança, precisamente no segundo domingo da Pascoa. Foi recolhido pelo arcediago Claude Frollo, e recebeu o nome de Quasimodo porque na missa do dia se cantava a antífona de introito “Quasi modo”. O menino cresceu e foi designado para ser sineiro da Catedral de Notre Dame. Devido ao alto som dos sinos da Catedral, Quasimodo acaba por ficar surdo.
Visto pela população de Paris como um monstro, Quasimodo mais tarde se apaixona pela dançarina cigana Esmeralda e vive um amor altruísta por ela. Chega a salvá-la quando ela se envolve em um caso de assassinato.
A ironia de Victor Hugo deixa entrever que o nome “Quase como uma criança” caracterizou também a vida do menino. Abandonado e crescido entre os sinos de Notre Dame, rejeitado pelos parisienses “normais” por seu aspecto, viveu sempre um desejo de ser aceito, E se o menino tinha vocação à salvação, ele não foi salvo da solidão pela igreja, mas salvou a amada bailarina cigana, Esmeralda, dos perigos em que se encontrava.
Um anticlerical conhece a nossa liturgia, talvez como muitos de nós não a conheçamos.
Mas parece interessante notar que o anticlerical Victor Hugo não ignora o sonho de misericórdia presente em todos os quasímodos do tempo presente.
Nós também, desejos do leite legítimo e puro, que nos vai fazer crescer na salvação, abrimos agora nosso coração ao Espírito que fala na mesa da Palavra desta Liturgia.
I. “Perseveravam eles na doutrina dos apóstolos, na reunião em comum, na fração do pão e nas orações” (At 2,42).
Cristo ressuscitou! Este grito estupefato dos nossos irmãos da primeira hora do anúncio evangélico atravessa as brumas do tempo com a mesma força dos inícios. Pela ressurreição do Senhor, sentimo-nos seduzidos pela mensagem de Cristo. “Seduziste-me Senhor, e eu me deixei seduzir” (Jr 20,7). Mas antes mesmo da mensagem, quem me atraiu foi Jesus, com seu amor 2 pessoal que atrai a Si e salva. Bento XVI, em um discurso à Congregação da Doutrina da Fé, ensinava que “a caridade, a partir do Coração de Deus, através do Coração de Jesus Cristo, difunde-se mediante o seu Espírito no mundo, como amor que tudo renova. Este amor nasce do encontro com Cristo na fé”. E continuava retomando uma frase muito eloquente da Encíclica Deus caritas est: “No início do ser cristão não há uma decisão ética, ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Bento XVI, Encicl. Deus caritas est, 1). Não sem razão nós católicos consideramos o Mistério Pascal o centro da doutrina e o coração da vida cristã. “Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação, e também vã é a vossa fé” (I Cor 15,14)
Jesus Cristo é a Verdade que se fez Pessoa, é a Pessoa divina que se fez homem para salvação do mundo. É Ele o verdadeiro Messias, o Verbo de Deus humanado que atrai o mundo a Si. Ele é a Luz que ilumina todo homem e a luz irradiada por Jesus é esplendor de verdade. Todas as outras verdades são uma centelha da Verdade que é Ele mesmo e que para Ele remete. Jesus é a estrela polar da liberdade humana: sem Ele, ela perde a sua orientação, porque sem o conhecimento da verdade a liberdade se desvirtua, isolando-se e reduzindo-se a um arbítrio estéril. Com ele, a liberdade volta a encontrar-se a si mesma, reconhece que é feita para o bem e expressa-se mediante ações e comportamentos de caridade, mediante as obras de misericórdia corporais e espirituais.
O Tempo de Páscoa é, portanto, um tempo de alegria, um tempo especial de graça e de fé. As sucessivas aparições do Ressuscitado marcam um forte ponto de inflexão na vida dos Apóstolos e dos discípulos. Para eles tudo mudou. E muda para nós também se acolhemos o Ressuscitado com as mesmas disposições dos discípulos e apóstolos. Talvez meu coração esteja desiludido e obtenebrado como o dos discípulos de Emaús. Ou quem sabe esteja incrédulo como o de Tomé. Ou ainda amargamente arrependido como Pedro. Ou ainda procurando um morto como inicialmente o fez Maria Madalena. Mas Ele está vivo. Aparece aos discípulos de Emaús e faz-lhes arder o coração com a Palavra, abrindo-lhes os olhos ao partir o pão. Entra na sala onde estavam os discípulos com medo e lhes oferece a Paz, o poder de perdoar os pecados. Vai ao encontro de Simão Pedro e lhe interroga sobre a sua amizade: Pedro, tu me amas! A Madalena que procurava o morto no sepulcro, Ele aparece vivo e a chama pelo nome: Maria! Em todas estas circunstâncias, Jesus se mostra como aquele que reconcilia e quase que suplica uma expressão de amor de acordo com a situação de cada um.
Os seguidores de Jesus já não estavam com medo, desesperançados, escandalizados pela morte ignominiosa do Mestre. A partir do encontro pessoal com o Ressuscitado, da fé na ressurreição, os Seus discípulos passaram a uma audácia sem par no anúncio do Evangelho, a ponto de se gloriarem de ser espancados por causa do Nome de Jesus.
A força dada pelo encontro com Ressuscitado fez com que o Evangelista Lucas, inspirado pelo Espirito Santo, assim descrevesse a vida dos discípulos: “Perseveravam eles na doutrina dos apóstolos, na reunião em comum, na fração do pão e nas orações” (At 2,42).
Neste versículo dos Atos dos Apóstolos se ressumem as características fundamentais da Igreja Católica. Unidade da Fé no ensinamento dos Apóstolos transmitidos de geração em geração, a Assembleia reunida que expressa a natureza da Igreja como comunhão dos santos, a Eucaristia como fonte e ápice da vida da Igreja e a oração como encontro com o Senhor e, enfim, um pouco mais adiante o mesmo hagiógrafo fala da comunhão de bens na comunidade (cf. At 4,32-35).
II. “Todo o que crê que Jesus é o Cristo, nasceu de Deus” (I Jo 5,1)
Glosando ainda o que dizia o Papa Bento XVI, podemos dizer que a experiência pascal dos discípulos não nasce da nostalgia, da simples recordação, nem mesmo da nobreza da mensagem. Não foi fácil para eles a convicção de que Cristo havia ressuscitado. Embora Jesus os tivesse preparado durante todo o transcurso de Sua vida pública, o que aconteceu foi que o fato da ressurreição os encontrou sem memória histórica e sem memória bíblica.
Sem a memória histórica porque Jesus, o Mestre, já lhes havia ensinado que era necessário que o Filho do Homem subisse a Jerusalém para ser morto pelos judeus e pelas autoridades romanas, mas ressuscitaria no terceiro dia. Antecipou aos três prediletos, lá no monte Tabor, uma manifestação da sua glória, com o testemunho da Lei e dos Profetas. Ele repreendeu de modo amoroso mas também veemente os discípulos de Emaús, dizendo-lhes: “Ó néscios, e tardos de coração para crerdes tudo o que os profetas disseram! Porventura não importava que o Cristo padecesse estas coisas e assim entrasse na sua glória?” (Lc 24,25-26).
Sem memória bíblica por terem esquecido que tudo estava lá, nas Escrituras, na Lei e nos Profetas. Mas os mestres de Israel não compreendiam que o Messias devia ser o Servo sofredor. Parecia que este aspecto da revelação se lhes havia apagado da memória. E esse esquecimento, de algum modo, afeta os discípulos e a sua difícil aceitação da realidade da Ressurreição.
Sem a memória bíblica do significado da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, pode acontecer que caiamos em uma idolatria, adorando uma falsa imagem do Deus verdadeiro. Isso acontece quando deixamos de ver o Messias Salvador, Deus feito Homem, para reduzi-lo a um mero provedor de prosperidade material a troco de algumas moedas; ou ainda, um curandeiro de enfermidades físicas ou psicológicas através da magia de ofertas ou votos extravagantes. Ou anida, quando vemos nele apenas o bom exemplo de um espirito iluminado. Ou quem sabe ainda como um filósofo da mesma dimensão de Lao Tse, Buda ou outro qualquer. Pior quando nos convencemos de que nossas obras ou ofertas conseguem “dobrar” a Deus.
Mas, irmãos, vejamos como, ao acolher na fé que opera pela caridade a realidade da Ressurreição, os discípulos se alegravam, cantavam hinos e salmos até no momento do martírio. Não à toa São Pedro, forte da sua experiência de restauração no encontro com o Senhor, mais tarde vai escrever: “Este Jesus vós o amais, sem o terdes visto credes nele, sem o verdes ainda, e isto é para vós a fonte de uma alegria inefável e gloriosa” (I Pd 1,8).
III. “… soprou sobre eles e disse: Recebei o Espirito Santo” (Jo 20,22)
Caros amigos, o Evangelho de hoje nos mostra duas realidades muito fortes: o Dom do poder de perdoar e a fé de Dídimo ou Tomé. Estas duas realidades apontam para a imensidão da misericórdia de Deus.
Detenhamo-nos na primeira parte do Evangelho proclamado. Deixemos que o Espírito Santo nos revele o Verbo. João narra que Jesus ressuscitado aparece aos Onze, mas lá estavam apenas dez. É quiçá o momento mais importante do Ressuscitado com seus Apóstolos. Eles estavam reunidos a portas fechadas por medo e temor. Jesus entra e os saúda dizendo: “A paz esteja convosco” ao mesmo tempo em que lhes mostrava as chagas que a glória da ressurreição não cancelou. Depois do quê lhes disse novamente: “A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio a vós” (Jo 20, 21).
Tenhamos bem claro que este capítulo 20 de São João narra o Dia da Ressurreição. Antes mesmo de glosar o texto evangélico, é importante fazer um breve preâmbulo para entender como João narra o episódio dando unidade aos mistérios de Cristo.
Ouçamos São Pedro: “Não se esqueçam disto, amados: para o Senhor um dia é como mil anos, e mil anos como um dia” (2Pd 3,8). A nossa liturgia católica costuma atribuir aos acontecimentos importantes uma “Oitava”, isto é, oito dias de celebração como se foram um só 4 dia. A Páscoa, ademais da Oitava que se encerra hoje, celebra como numa unidade, cinquenta dias. O mistério pascal revolve o curso do tempo. Se nos Atos dos Apóstolos, São Lucas situa a efusão do Espirito Santo no dia de Pentecostes, isto é, cinquenta dias após a Páscoa, em João a Ressurreição, a Ascensão e o sopro do Espirito Santo se dão num “único e mesmo dia”. Em João o milagre de Pentecostes se dá na Ressurreição. Em Lucas a inauguração solene do tempo da Igreja, se dá em Pentecostes. A aparição de Jesus glorioso aos discípulos e a efusão do Espírito Santo sobre eles vêm a equivaler, no Evangelho de João, ao Pentecostes do livro dos Atos, de São Lucas. De um lado o João, inspirado pelo autor principal da Bíblia, frisa a unidade do mistério de Cristo. Lucas, por sua vez, realça a realidade histórica dos acontecimentos que se desenrolam no curso de um determinado tempo. Não há contradição entre uma e outra coisa.
Mas voltemos à saudação de Jesus. No Missal Romano, o livro católico nos guia na celebração da Missa, depois de uma longa lista de saudações de tipo trinitário ou de sabor mais cristológico, encontramos uma última aparentemente mais simples, a ser usada somente pelo Bispo que preside uma Eucaristia. A Igreja, na sua liturgia, reserva aos Bispos a fórmula da saudação do Ressuscitado aos discípulos amedrontados, escondidos com as portas fechadas. Aos Apóstolos e a seus Sucessores cabe o anúncio da Paz, do gaudium cum pace, da Alegria com a Paz que tanto mais se alcança quanto mais entregamos a nossa vida nas mãos do Senhor.
Justamente nesta saudação, anunciando que os enviaria, Jesus sopra o Espírito Santo sobre os Apóstolos e lhes confere o poder de perdoar os pecados, o que é uma participação humana em um poder exclusivo de Deus. Como é consolador saber que a nossa fragilidade, após o batismo, não fica abandonada a si mesma. “Aqueles a quem perdoardes ser-lhes-ão perdoados os pecados. Aqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos”. Embaixadores de reconciliação, com uma unção espiritual que tem a força de Pentecostes, já no primeiro domingo da Ressurreição.
IV. “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28)
Retomemos o texto evangélico na cena do encontro de Tomé com Jesus. Nela vemos o mais profundo ato de fé do Novo Testamento. Trata-se da profissão de fé de Tomé. Tomé queria ver as feridas do seu Mestre, para ter a certeza de que Jesus estava vivo. Falta de memória histórica. Não tinha ele visto o filho da viúva de Naim? Não tinha por acaso visto Lázaro que já exalava mau odor do tumulo? Quantas curas… e no entanto não conseguia admitir a possibilidade da Ressurreição. Pediu para ver os sinais da ferida e da morte para certificar-se de que estava vivo.
Quando, oito dias depois, o Senhor Jesus volta ao mesmo lugar e, estando as portas fechadas, põe-se no meio deles. A mesma saudação: “A paz esteja convosco”. Nós sabemos que Cristo é a nossa Paz. Estando Tomé entre eles, Jesus apresentou-se com a paz. Convida-o a tocar as suas feridas e o repreende, desejando que caísse em si: “E não sejas incréu, mas fiel” (Jo 20,27). Tomé, vendo ressuscitado o seu Mestre que cria ainda morto, agora se dobra e faz a mais bela e profunda profissão de fé do Novo Testamento: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28).
Mas se viu, não creu. Quem vê apenas conhece, sabe, toma consciência. A visão e a fé são diferentes. Mas o que aconteceu ali? De fato Tomé viu o seu Mestre ressuscitado com as feridas da Paixão. Mas não é este o objeto da fé. Tomé viu o homem e acreditou em Deus. Viu o Homem Jesus e abraçou a fé em Jesus que é “meu Senhor e meu Deus”. Dá o salto de profundidade que o lhe permite chegar depois à bem-aventurança. Esta profissão de fé, muitos a fazem ao verem a Santíssima Eucaristia elevada na consagração, gesto piedoso, mas não previsto na liturgia.
“Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (Jo 20, 29), diz Jesus em seguida. O fato que Nosso Senhor tenha confirmado a sua mensagem de paz mostrando as feridas das mãos e 5 do lado aberto é muito significativo. Isso indica que embora o mistério pascal seja o mistério da Ressurreição, ele reevoca inexoravelmente a paixão e a morte. Então o anúncio da paz feito pelo Ressuscitado mostra que a paz é fruto do sangue de Cristo derramado na Cruz (cf. SC 33). No instante supremo (kairós) do Calvário Cristo transcendeu os limites do tempo, tomando sobre Si os pecados de todo o gênero humano e destruindo-lhes o poder com a força do seu sangue.
Bem-aventurados nós que ouvimos o testemunho sobre a Ressurreição de Jesus feito com poder e unção espiritual pelos Apóstolos. “Com grandes sinais de poder, os apóstolos davam testemunho da Ressurreição do Senhor Jesus” (At 4,33). O efeito fulgurante da Ressurreição sobre os fiéis fazia com que eles, embora incompreendidos e até perseguidos pelas autoridades, fossem “estimados por todos” (At 4,34).
Se a luz da ressurreição brilhar em nossas vidas, caros irmãos, nossa reputação humana também ganhará novas luzes e mesmo incompreendidos em muitas coisas, seremos estimados na comunidade em que vivemos.
Disso tudo há um fruto de alegria e de paz. Alegria, exultação, júbilo que nos consente em todo o tempo pascal cantar à Virgem Mãe que o seu Filho ressuscitou.
Regina Coeli, laetare allelluia.
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!