A MESA DA PALAVRA
Dom José Aparecido Gonçalves de Almeida
II Domingo da Quaresma – B
25 de Fevereiro de 2024
ESTE É O MEU FILHO AMADO: ESCUTAI-O!
Caros amigos,
I. “Não podemos deixar de falar do que vimos e ouvimos” (At 4,22).
Domingo passado, o primeiro da Quaresma, suplicávamos a Deus a graça de progredir no conhecimento do mistério de Cristo através dos exercícios da quaresma e corresponder-lhe por uma vida santa (cf MR, Coleta). Ao longo da semana, juntamente com o clero da diocese de Ipameri, os nossos padres e eu participamos dos exercícios espirituais anuais, procurando na escuta da Palavra de Deus entrar mais profundamente na intimidade a que o Senhor nos chama. Uma pergunta perpassou os nossos tempos de oração: “Senhor, como quereis que eu vos sirva hoje?”. Esta pergunta nos ajuda a reacender o ardente desejo de conhecer o rosto de Jesus e de oferecer-lhe o louvor de uma vida santa.
A santidade de vida dos sacerdotes se manifesta na quotidiana solicitude pelas necessidades dos fiéis e pelas dores dos que sofrem, no zelo incansável pela pregação da Palavra de Deus, na dedicada entrega ao serviço do altar, no empenho de promover comunhão de vida entre os irmãos. Nesse sentido, a Igreja, perita em humanidade, é também uma escola de amizade, daquela amizade à qual nos chama Cristo ao dizer: “Já não vos chamo servos, eu vos chamo amigos!”.
Desejo, portanto, iniciar esta nossa oração em voz alta, agradecendo ao bom Deus pelos preciosos dias de oração e de revisão de nossa vida sacerdotal. Rogo ao Senhor que a percepção das nossas fragilidades e da fortaleza de nosso Pai-Deus – quando sou fraco, então é que sou forte – nos ajude a todos os sacerdotes da nossa Diocese a ser mais valorosos servidores do Senhor e daqueles a quem pastoreamos por graça de Deus.
No nosso retiro, em muitos momentos pareceu-nos estar como Pedro, Tiago e João lá no monte Tabor. Mas não chegamos a pedir para fazer três tendas, não obstante o forte desejo de permanecer no nosso modesto Tabor. Muito mais do que ficar lá, desejávamos voltar quanto antes para o lugar da nossa entrega quotidiana, lá onde somos chamados a testemunhar na alegria o que vimos e ouvimos na ungida pregação de Dom Dilmo, Bispo Auxiliar de Anápolis.
Neste segundo domingo da Quaresma, queridos irmãos, a liturgia católica celebra o quarto mistério luminoso do Rosário, a Transfiguração do Senhor. Aproxima-se cada vez mais o mistério da Cruz e Jesus não quer deixar os Apóstolos sem um sinal de consolação, como vemos no episódio narrado por São Marcos. Quantas vezes também a nós não é dado prelibar a visão da glória do Senhor. Muitas consolações que nos preparam para a próxima Cruz, até que o Senhor nos chame.
No trecho do Evangelho segundo Marcos hoje proclamado é fácil ver a alusão aos sentidos da audição e da visão. E também na oração da coleta encontramos uma preciosa articulação entre escuta e visão, entre escuta da fé e a visão da glória. Nessa oração feita após o ato penitencial assim suplicamos a Deus:
“Ó Deus, que nos mandastes ouvir o vosso Filho amado, alimentai-nos com a vossa palavra, para que, purificado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão da vossa glória”.
Podemos ver nessa coleta uma oração concisa e bem articulada, tão típica da tradição romana. Através dela nos dirigimos confiantes ao Pai de Jesus para pedir-lhe graças. A Ele, que no Batismo de Jesus e agora, na Transfiguração, nos manda escutar o Seu Filho, rogamos que nos alimente com a sua Palavra. Cristo é a Palavra, o Verbo feito carne, o Verbo de Deus humanado, o Verbo feito Pão vivo. Precisamente da escuta da Palavra nasce a fé: fides ex auditu, diz Paulo aos romanos (Rm 10,17). Mas a fé gerada na escuta da Palavra tem o seu olhar purificado, habilitado para a visão da glória de Deus.
II. “Toma o teu filho único a quem tanto amas, Isaac, e vai … oferece-o em holocausto” (Gn 22,2).
Na primeira leitura, se relata a prova a que Deus submete o Pai Abraão. A provação da fé não tem por finalidade fazer Deus conhecer a nossa fé. Quanto a nossa fé é colocada à prova, é para que nós conheçamos o vigor e a fidelidade que realmente temos na nossa relação com o Senhor. Abraão saiu de sua terra, da casa de seus pais e, fiando-se na promessa de Deus, foi para onde o Senhor o mandava. Agora Deus, que lhe deu o filho da promessa na velhice, pede a Abraão que lhe ofereça Isaac em holocausto. Holocausto é o sacrifício completo. Nada fica ao oferente, nada fica ao sacerdote, tudo é só de Deus.
A ordem é terrível para o seu coração de pai e não menos para a sua fé, pois Abraão não quer duvidar de seu Deus. É Isaac a única esperança de cumprimento das promessas divinas. No entanto, Abraão obedece e continua a crer que Deus manterá a palavra dada. Afinal a descendência prometida deveria vir por meio de Isaac. Abraão merece realmente o título nosso patriarca, nosso pai na fé, que a nova tradução do Missal recolocou em evidência.
Deus não contava com a morte de Isaac, mas com a obediência incondicional de Abraão. A fé é sim o início de todo o bem mas a obediência é a sua consumação. Sim, Isaac, primogênito de Abraão é poupado e o próprio Deus providencia o cordeiro do resgate. Este cordeiro antecipa a missão de Jesus de ser o verdadeiro Cordeiro imolado – a Ele o Pai não poupou – por nós homens e para a nossa salvação.
Se Isaac subiu o monte Moriá levando o lenho para queimar o sacrifício, Jesus subiu o monte Calvário com o madeiro em que ia ser entregue, “abraçando livremente paixão” (MR Oração Eucarística II).
E assim como em Isaac poupado da morte realizam-se as divinas promessas, assim, de Cristo ressuscitado da morte, provém vida e salvação para toda a humanidade. Disso ninguém pode duvidar porque “Cristo Jesus que morreu e, mais ainda, que ressuscitou, está à direita do Pai e intercede por nós” (Rm 8,34).
III. “E se transfigurou diante deles” (Mc 9,2)
Havia pouco tempo, Pedro confessara que Jesus é o Messias, o Filho do Deus vivo. Jesus começara então a anunciar sua paixão e morte de Cruz. Pedro não compreende a conveniência da Cruz para a salvação; não consegue entender como o Messias tenha de sofrer e ser crucificado. Jesus é muito firme com ele: “Afasta-te de mim, Satanás. Não pensas como Deus …”. Mas com sua boa pedagogia vai mostrando aos discípulos que a sua condição messiânica não comporta uma glória mundana como a dos senhores deste mundo.
No episódio de hoje, Jesus sobe ao Tabor com Pedro, Tiago e João. Ali deseja oferecer aos discípulos uma breve visão da glória, antes de ser crucificado. “Tendo predito aos discípulos a própria morte, Jesus lhes mostra na montanha sagrada todo o seu esplendor” (MR, Prefácio do 2º Domingo da Quaresma). Suas roupas ficam brilhantes e tão alvas como lavandeira seria capaz de as alvejar.
Aparecem também Moisés e Elias que começam a conversar com Jesus. “E com o testemunho da Lei e dos Profetas, simbolizados em Moisés e Elias, nos ensina que, pela Paixão e Cruz, chegará à glória da Ressurreição” (MR, Prefácio do 2º Domingo da Quaresma).
Ante esta visão fulgurante, Pedro toma a palavra e diz: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas…”. Pedro não sabia o que dizer – comenta São Marcos – estavam todos com medo. A visão era tão consoladora que parecia o céu antecipado. Mas ainda não era o céu…
Neste momento uma nuvem os cobriu com sua sombra e dela se ouviu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!”. Sim, agora é o Céu que fala, o Pai revela a plena beleza do Filho. Mas logo a seguir desvanece a visão fulgurante e ficam somente eles e Jesus. Nosso Senhor então lhes diz para não contarem a ninguém o que tinham presenciado enquanto Ele não ressuscitasse dos mortos. Os discípulos obedecem, mas sem entender o que significava ressuscitar dos mortos. Só irão entender mais tarde, após os acontecimentos pascais. Pedro guardará a memória pormenorizada do acontecido e muitos anos depois nos dará em uma de suas Cartas um relato comovente de tudo o que ali aconteceu.
Nós esperamos confiantes a plena realização das promessas de Deus. O que pedimos na oração inicial é que o Senhor nos alimente na esperança com a Palavra de Vida, para vivermos a bem-aventurança da visão, para nos alegrarmos eternamente com a visão da glória.
Irmãos, esta quaresma nos lembra que ainda não estamos no tempo da plena visão. Este é o tempo da escuta da Palavra, que ilumina os corações dos fieis, prepara-nos no tempo com a purificação do olhar da fé.
A visão beatífica, a visão da glória está reservada para a eternidade. Não é tempo de acamparmos em três tendas. È tempo de purificação.
O Rito da Iniciação Cristã dos adultos, reformado segundo os costumes da antiga tradição catecumenal, apontam as duas primeiras semanas da quaresma como tempo de purificação, que precede o primeiro escrutínio, previsto para o III Domingo.
Hoje, a nós que já fomos batizados, nos é dado o antegozo da visão da glória na Transfiguração. Assim renovamos o nosso desejo de purificação, sustentados pela Santíssima Eucaristia. Nela damos graças a Deus porque, ainda na terra, Ele nos concede a alegria de já participar das coisas do Céu (MR, pós-comunhão).
Que a Virgem Mãe do Senhor nos ajude a percorrer estes caminhos que o Senhor nos prepara nesta Quaresma. E que nos perguntemos cada dia deste tempo forte: “Senhor, como quereis que eu vos sirva hoje?”.