A MESA DA PALAVRA
Dom José Aparecido Gonçalves de Almeida
DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR ANO B
Domingo, 24 de março de 2024
Amados irmãos e irmãs, I. “Ó portas, levantai vossos frontões, … a fim de que o Rei da glória possa entrar” (Sl 23). Com o Domingo de Ramos – o ingresso de Jesus em Jerusalém – se abre a Semana Santa, a principal de todo o ano litúrgico. Esta semana nos convoca ao silêncio e à contemplação dos mistérios da nossa salvação. Logo após o primeiro anúncio da paixão, Jesus disse aos discípulos: “Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mc 8,34). Nesta semana, de todas a mais santa, aprendemos a seguir os passos de nosso Senhor, passando pela Cruz e pelo Sepulcro, para chegar a ver o rosto do Ressuscitado. Certamente, a sequência de ações litúrgicas da Semana Santa é a mais rica das memórias dos mistérios da redenção: a paixão, a morte, a sepultura, a ressurreição do Senhor.
Participando desde hoje na liturgia da Semana Santa e seguindo fervorosamente os exercícios espirituais sugeridos pela piedade popular, o povo fiel faz como que um retiro espiritual, no qual procura ver e acompanhar na contemplação os vários passos de Jesus. Estes passos de Jesus são o ícone do nosso caminho de salvação. A comunidade cristã é chamada a recolher-se frequentemente para a escuta da Palavra de Deus, que reevocará os grandes momentos da nossa salvação; mas também, para a oração, que é a resposta reconhecida e repleta de louvor pelos gestos da divina misericórdia; e, sobretudo, para a celebração da Eucaristia, o sacramento no qual renovamos em nossa vida o drama do mistério pascal. Nela o verdadeiro Cordeiro pascal se imola nos sinais do Corpo de Jesus oferecido por nós e o seu Sangue derramado pela remissão dos pecados.
Os dias da Semana Santa são também os dias da Paixão da Igreja que revive em si as dores de Cristo. Na Liturgia da Igreja, o povo de Deus une-se a Cristo-Cabeça que, depois de entrar em Jerusalém ao som dos hosanas, aparece como o Servo humilhado até à morte. Ele, “entregando-se a uma condenação injusta, carrega o peso dos nossos pecados” e na sua morte lava as nossas culpas. São, portanto, para nós, dias de recolhimento e de silêncio, em que os fiéis nos entregamos à meditação do desígnio surpreendente e estupendo do Filho de Deus que nos amou ao ponto de morrer na cruz. São dias de esperança porque o Mal foi vencido definitivamente e a morte deu lugar à Ressurreição. São, portanto, dias de serenidade e de alegria, dias em que descobrimos paulatinamente a força da caridade que nos resgatou e da vida nova que sai do sepulcro de Jesus. É o início e o gérmen de vida ressuscitada para todos os homens.
A Semana Santa tem por objetivo levar a comunidade cristã à veneração da Paixão de Cristo a partir do seu ingresso messiânico em Jerusalém. Os dias da Semana Santa, de segunda até quinta-feira, nos levam a reviver com o Senhor, os passos da sua oblação. Na Quinta-feira Santa pela manhã, os sacerdotes, diante do Bispo, renovam o compromisso de ser outro Cristo para a comunidade eclesial. Na mesma Missa, o Bispo, concelebrando com o seu presbitério, bendiz os Santos Óleos e consagra o Santo Crisma. Depois, ao entardecer da Quinta-feira Santa, começa o Tríduo Pascal, uma única liturgia, cadenciada em três ações litúrgicas, que se conclui com a benção final da Vigília e com o canto do Regina Coeli. Mas venhamos a esta nossa celebração e reflitamos sobre ela seguindo as reflexões sobre o Domingo de Ramos sugerida há alguns anos pelo Papa Bento XVI, de saudosa memória. Guiados por ele, hoje repercorremos espiritualmente o ingresso de Jesus em Jerusalém. É um evento glorioso para Cristo aclamado como o rei de Israel que vem em nome do Senhor. Mas é preciso ter bem presente que esta glória e realeza de Cristo é somente preanunciada. Isto porque, Jesus, como havia predito várias vezes, deve antes passar pela Paixão.
A procissão, com os seus cantos e a sua festividade, não nos deve fazer esquecer que à ressurreição não chegaremos por um caminho diferente do caminho que passa pelo Calvário. Aproveitemos esta ocasião, caros irmãos, para pedir também nós a graça de segui-lo até à Cruz, para sermos participes da sua ressurreição.
Mas prestemos atenção. Esta Liturgia, com seus gestos simbólicos, não é somente um drama sagrado, não é apenas uma exibição teatral, que acompanhamos à distância, talvez até sentindo as emoções que pode provocar. A participação nesta celebração nos coloca diante de algumas questões importantes sobre a nossa relação com Jesus, com Seu Pai e o Espirito Santo. “Se quisermos ir ao encontro de Jesus e assim caminhar juntamente com Ele ao longo do seu caminho, deveremos, entretanto, nos perguntar: qual é o caminho pelo qual Ele tenciona orientar-nos? O que nós esperamos dele? O que Ele espera de nós?”. As respostas podem ser decisivas para modelar a nossa atitude espiritual e moral, o nosso comportamento nos ambientes familiar e social, na vida profissional e inclusive política.
Mas continuemos a nos interrogar, a nos examinar, olhando para o modo de ser de Jesus. Como compreender os acontecimentos do Domingo de Ramos? Como descobrir o significado daqueles acontecimentos não apenas para aquela época, mas também para todos os tempos, inclusive o nosso, aqui em Itumbiara e agora? II.
“O Senhor precisa dele (do jumentinho), mas logo o mandará de volta” (Mc 11,3)
Caros irmãos, se queremos compreender em profundidade o significado dos acontecimentos celebrados no Domingo de Ramos, é importante não negligenciar um pormenor. Este pormenor tornou-se também para os discípulos a chave para a compreensão deste acontecimento quando, após a Páscoa, eles voltaram a percorrer com um novo olhar aqueles dias tumultuosos. É com esse olhar que contemplamos hoje a cena da entrada de Jesus em Jerusalém. Ele entra na Cidade Santa montado num jumentinho, num animal das pessoas simples do campo. Vejam, caros amigos, voltem os olhos da alma para a cena. Jesus não chega num majestoso carro de luxo, nem cavalgando um cavalo como o Bucéfalo de Alexandre Magno, ou um Cavalo Árabe puro-sangue, mas um jumentinho que tinha pedido emprestado. Foi a única criatura a respeito da qual o Senhor disse: “preciso dele”. E tomou emprestado o jumentinho para entrar na Cidade de Davi. Imaginemos se teríamos feito as mesmas escolhas de Jesus….
O autor do quarto Evangelho deixa claro que, num primeiro momento, os discípulos não O compreenderam. Somente mais tarde, depois da Páscoa, chegaram a perceber que Jesus, agindo assim, estava cumprindo os anúncios dos profetas. Só então vieram a compreender que o seu modo de agir derivava da Palavra de Deus e que, com tal gesto, Ele a levava ao seu cumprimento.
Com a efusão do Espirito Santo, que revela todas as coisas, os discípulos recordaram mais tarde, a profecia de Zacarias, onde se lê: “Não temas, Filha de Sião, olha o teu Rei que chega sentado na cria de uma jumenta” (Jo 12, 15; cf. Zc 9, 9). Mas para compreender o significado da profecia em toda a sua extensão e profundidade, é necessário ouvir todo o texto de Zacarias. Assim prossegue o texto profético: “Ele exterminará os carros de guerra da terra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de guerra será quebrado. Proclamará a paz para as nações. O seu império irá de um mar ao outro, e do rio às extremidades da terra” (9, 10). III.
“Hosana! Bendito seja o que vem em nome do Senhor” (Mc 11, 9; Sl 118 [117], 25 s.)
Se nos detivermos, caros irmãos, com a devida acuidade espiritual na perscrutação destas palavras proféticas, perceberemos com Bento XVI as três características que, segundo Zacarias, nos permitem identificar o perfil do rei que há de vir, do verdadeiro Messias.
Em primeiro lugar, diz que ele será um rei dos pobres, um pobre entre os pobres e para os pobres. Neste caso, a pobreza é entendida no sentido dos anawim de Israel, daquelas almas crentes e humildes que encontramos em redor de Jesus na perspectiva da primeira BemAventurança do Sermão da Montanha. Um indivíduo pode ser materialmente pobre, mas ter o coração cheio de desejo da riqueza material e do poder que deriva da riqueza. Precisamente o facto de viver na inveja e na avidez demonstra que, no seu coração, ele pertence aos ricos. Deseja alterar a repartição dos bens, mas para chegar a estar pessoalmente na situação dos ricos de antes. A pobreza, no sentido de Jesus no sentido dos profetas pressupõe sobretudo a liberdade interior do desejo da posse e da avidez do poder. Trata-se de uma realidade maior do que uma simples repartição diferente dos bens que, todavia, permaneceria no campo material, tornando aliás os corações ainda mais duros. Trata-se, em primeiro lugar, da purificação do coração, graças à qual se reconhece a posse como responsabilidade, como dever em relação aos outros, colocando-se sob o olhar de Deus e deixando-se orientar por Cristo que, sendo rico, se fez pobre por nós (cf. 2 Cor 8, 9). A liberdade interior é o pressuposto para a superação da corrupção e da avidez, que já devastam o mundo; esta liberdade só pode ser encontrada se Deus se tornar a nossa riqueza; só pode ser encontrada na paciência das renúncias quotidianas, nas quais ela se desenvolve como autêntica liberdade. É o rei, que nos indica o caminho rumo a esta meta Jesus é Ele que aclamamos no Domingo de Ramos; é a Ele que pedimos para que nos acompanhe ao longo deste seu caminho.
Em segundo lugar, o profeta mostra-nos que este rei será um rei de paz: Ele exterminará os carros de guerra da terra e os cavalos de batalha, quebrará os arcos de guerra e proclamará a paz. Na figura de Cristo isto concretiza-se mediante o sinal da Cruz. Ela é o arco quebrado, de certa maneira o novo e autêntico arco-íris de Deus, que une o céu e a terra e lança uma ponte sobre os abismos e entre os continentes. A nova arma, que Jesus coloca nas nossas mãos, é a Cruz sinal de reconciliação e de perdão, sinal do amor que é mais forte do que a morte. Cada vez que fazemos o sinal da Cruz devemos recordar que não podemos opor-nos a uma injustiça com outra injustiça, a uma violência com outra violência; devemos recordar que só podemos vencer o mal com o bem, jamais retribuindo o mal com o mal.
A terceira afirmação do profeta é o prenúncio da universalidade: o rei messiânico é um rei universal. Zacarias diz que o reino do rei da paz se difunde “de um mar ao outro… até às extremidades da terra”. Aqui, a antiga promessa da Terra, feita a Abraão e aos Padres, é substituída por uma nova visão: o espaço do rei messiânico já não é um determinado país que em seguida se separaria necessariamente dos outros e portanto, de modo inevitável, tomaria uma posição também contra os demais países. O seu país é a terra, o mundo inteiro. Ultrapassando toda a delimitação, na multiplicidade das culturas, Ele cria a unidade. Penetrando com o olhar as nuvens da história, que separavam o profeta de Jesus, vemos nesta profecia emergir de longe na profecia a rede das comunidades eucarísticas que abraça a terra, o mundo inteiro uma rede de comunidades que constituem o “Reino da paz” de Jesus, de um mar ao outro, até às extremidades da terra. Ele vem a todas as culturas e a todas as regiões do mundo, a toda a parte nas cabanas mais miseráveis e nos campos mais pobres, assim como no esplendor das catedrais. Em todos os lugares Ele é o mesmo, o Único, e assim todos os orantes congregados, na oração com Ele, encontram-se também unidos entre si num único corpo. Cristo domina, tornando-se Ele mesmo o nosso pão e entregando-se a nós. É desta maneira que Ele edifica o seu Reino. IV.
“Possamos nele oferecer-vos frutos de boas obras…”
Contudo, caros irmãos, permitam-me ir mais além nesta nossa meditação sobre a entrada em Jerusalém. Há mais uma palavra a que devemos prestar atenção, palavra esta que usamos na nossa liturgia quando estamos unidos para celebrar o memorial da Pascoa do Senhor. Esta união torna-se totalmente clara na outra palavra veterotestamentária, que caracteriza e explica a liturgia do Domingo de Ramos e o seu clima especial. A multidão aclama Jesus: “Hosana! Bendito seja o que vem em nome do Senhor” (Mc 11, 9; Sl 118 [117], 25 s.). Esta palavra faz parte do rito da festa judaica dos tabernáculos, durante o qual os fiéis caminham em redor do altar, tendo nas mãos alguns ramos compostos de palmas, mirtos e salgueiros. Pois bem, com as palmas nas mãos, as pessoas elevam este clamor diante de Jesus, em Quem vislumbram “Aquele que vem em nome do Senhor”. Com efeito, a expressão “Aquele que vem em nome do Senhor” tornou-se há muito tempo a designação do Messias. Em Jesus reconhecem Aquele que verdadeiramente vem em nome do Senhor e traz a presença de Deus ao meio de nós. Este brado de esperança de Israel, esta aclamação a Jesus durante o seu ingresso em Jerusalém, na Igreja tornou-se justamente a aclamação Àquele que, na Eucaristia, vem ao nosso encontro de um modo novo.
Com o brado do “Hosana!” saudamos Aquele que, em carne e sangue, trouxe a glória de Deus à terra. Saudamos em Jesus, servo sofredor, Aquele que já veio e que, todavia, permanece sempre Aquele que há de vir. Saudamos Aquele que, na Eucaristia, vem sempre de novo a nós em nome do Senhor, unindo deste modo na paz as extremidades da terra. Esta experiência da universalidade constitui uma parte essencial da Eucaristia. Quando o Senhor vem, nós saímos dos nossos particularismos exclusivos e entramos na grande comunidade de todos aqueles que celebram este santo Sacramento. Entramos no seu reino de paz e, de certo modo, saudamos nele também todos os nossos irmãos e irmãs, aos quais Ele vem, para se tornar um verdadeiro reino de paz no meio deste mundo dilacerado.
As três características anunciadas pelo profeta pobreza, paz e universalidade são resumidas no sinal da Cruz. Houve um período, que ainda não foi totalmente superado, em que se rejeitava o cristianismo precisamente por causa da Cruz. A Cruz – dizia-se – fala de sacrifício; e ainda: a Cruz é sinal de negação da vida. Nós desejamos uma vida sem limites e sem renúncias. Queremos viver, somente viver. Não nos deixamos condicionar por preceitos nem por proibições; nós desejamos a riqueza e a plenitude assim se dizia e ainda se diz. Tudo isto parece convincente e cativante; é a linguagem da serpente que nos diz: “Não vos amedronteis! Comei tranquilamente de todas as árvores do jardim!”.
Porém, o Domingo de Ramos diz-nos que o verdadeiro grande “Sim” é precisamente a Cruz, que a Cruz é a verdadeira árvore da vida. Não encontramos a vida nos apropriando dela, mas entregando-a. O amor é um doar-se a si mesmo, e por isso mesmo é o caminho da vida verdadeira, simbolizada pela Cruz.
Na oração para a bênção dos ramos, nós assim rogamos ao Senhor: “Aumentai, ó Deus, a fé daqueles que esperam em vós e atendei clemente as preces de quantos vos suplicam, para que, nós que hoje levamos os ramos de palmeiras em honra do Cristo triunfante, possamos nele oferecer-vos frutos de boas obras”. A oração, parcialmente inspirada nos antiguíssimos Ordines Romani, (OR, L p. 169), nos faz pedir que o ato de levar os ramos nos leve a uma profunda conversão que se manifeste nas boas obras.
Os frutos de boas obras são aqueles que nascem da nossa união com o Senhor também no caminho da Cruz. Nós O aclamamos Rei, não como um rei mundano. Nós cantamos hosana Àquele que vem montado num jumentinho. Ele vem anunciar a paz que conquista para nós na oblação da Cruz e nos comunica em cada Eucaristia.
O Sim à Cruz do Senhor, simbolicamente, é o caminho indicado pelo profeta, o caminho que vai de um mar ao outro, e do rio até às extremidades da terra. Trata-se do caminho daquele que, no sinal da Cruz, nos comunica a paz e nos faz ser portadores da reconciliação e da sua paz. Amém!