A MESA DA PALAVRA
VIII Domingo do Tempo Comum – C
Itumbiara, 2 de março de 2025
“A boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6, 45)
Caríssimos amigos,
I. “Fazei, Senhor, que os acontecimentos deste mundo decorram na paz que desejais, e vossa Igreja vos possa servir alegre e tranquila” (da Coleta)
Em sua estrutura simples e direta, típica das antigas orações romanas, esta coleta remonta ao século V e eleva uma súplica à Divina Providência para que a ordem dos acontecimentos deste mundo seja conduzida segundo a paz de Deus e para que a Igreja possa servi-Lo com alegria e tranquilidade.
Presente entre as missas votivas para pedir a paz até 1962, ela é uma oração de intercessão pela estabilidade e tranquilidade da Igreja que zingra os mares da história e se apresenta como sacramento universal de salvação do gênero humano. Ela aparece entre as missas votivas pela paz e estabilidade da Igreja.
A partir da Editio Typica do Missal Romano de 1970, fruto da da reforma litúrgica subsequente ao segundo Concílio Vaticano, agora ela entra no corpo das coletas dominicais com um respiro teológico mais amplo. A sua súplica, com a mesma redação de antes, se desloca de um pedido de tranquilidade social e paz política para um convite à confiança no governo da Providência de Deus sobre todas as coisas. Passa do terreno das relações com a comunidade política, para o terreno do senhorio cósmico do Senhor.
Nesta perspectiva, seja qual for a situação em que se encontrarem os filhos de Deus, alcançamos a verdadeira paz e tranquilidade, não quando somos poupados das adversidades mas quando sabemos que Deus nosso Pai está conosco. Ouçamos o que diz o Senhor a Israel pela boca do profeta Isaias (43,1-6). “E agora, eis o que diz o Senhor, aquele que te criou, Jacó, e te formou, Israel: “Nada temas, pois eu te resgato, eu te chamo pelo nome, és meu. Se tiveres de atravessar a água, estarei contigo. E os rios não te submergirão. Se caminhares pelo fogo, não te queimarás, e a chama não te consumirá.
Pois eu sou o Senhor, teu Deus, o Santo de Israel, teu salvador. Dou o Egito por teu resgate, a Etiópia e Sabá em compensação. Porque és precioso a meus olhos, porque eu te aprecio e te amo, permuto reinos por ti, entrego nações em troca de ti”.
Quanto a nós, sabemos que Jesus “me amou e se entregou por mim”, como dizia o Apóstolo. Fomos resgatados a caro preço: o sangue do nosso Divino Redentor.
II. “… a palavra mostra o coração do homem” (Eclo 27,7)
Já os homens sábios da Primeira Aliança sabem que a palavra é a expressão mais transparente do coração humano. É na capacidade de diálogo que nos revelamos quais somos. “O fruto revela como foi cultivada a árvore” (v.7).
Nesse sentido, a profissão de fé mediante as palavras, uma vez confrontada com o nosso modo de viver, revela a sinceridade do coração. A vida do fiel é, por assim dizer, um sinal sacramental: gestos e palavras se unem na expressão da verdade e do amor que nos une ao Deus vivo e verdadeiro. Quando há divergência entre as palavras que saem dos lábios do homem e a sua conduta exterior, se cai na falta de sinceridade ou na falta de sentido crítico sobre ele próprio. É onde entra em cena a hipocrisia, palavra que significa literalmente “pouco discernimento”. É um risco sempre presente que devemos combater e evitar.
Em grego antigo, a palavra ὑπόκρισις (hypókrisis) tinha um significado amplo, que evoluiu ao longo do tempo. Originalmente, significava a arte de responder ou argumentar em um discurso. No teatro podia significar a arte da atuação teatral, declamação ou performance.
A palavra grega κρίσις (krísis) tem um significado fundamental relacionado a julgamento, decisão ou separação. Seu sentido pode variar conforme o contexto. Pode significar julgamento, decisão ou discernimento, quando se refere ao ato de avaliar ou decidir algo, especialmente no contexto jurídico ou filosófico. Em textos clássicos e no Novo Testamento, krísis muitas vezes significa um julgamento proferido por uma autoridade, como por exemplo em Mt 12,36: “No dia do juízo (ἡμέρα κρίσεως), os homens darão conta de suas palavras”. No sentido mais geral, krísis pode indicar o discernimento, isto é, o ato de distinguir entre coisas, separando o que é certo do que é errado.
O étimo krísis evoluiu também para significar um momento decisivo ou ponto crítico. Modernamente, em um sentido mais amplo, krísis também passou a significar uma situação de mudança drástica ou decisiva, de onde vem o nosso uso moderno da palavra “crise” para momentos difíceis ou de transição.
Retomando a palavra hipocrisia, podemos dizer que a ligação entre ὑπόκρισις (hypókrisis) e κρίσις (krísis) está na ideia de resposta, interpretação ou julgamento. Enquanto krísis indica um juízo verdadeiro ou uma decisão objetiva, hypókrisis (hipocrisia) implica uma falsa apresentação ou uma interpretação enganosa da realidade. Ela adquire, portanto, uma forte conotação moral, passando a significar fingimento, dissimulação, falsidade. Bem cedo, o termo adquiriu o sentido translato de atitude de quem finge ser algo que não é, especialmente no contexto moral e religioso. Esse significado já aparece no Novo Testamento, onde Jesus acusa os fariseus de hypókrisis, isto é, de fingirem santidade enquanto, na realidade, estavam cheios de injustiça e corrupção (cf. Mt 23,27-28).
Ao se revestir de imortalidade, tornando-se nova criatura, o cristão rejeita toda forma de hipocrisia, opondo-lhe o hábito da lealdade unida à sinceridade, diante de Deus e dos irmãos.
III. “A boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6,45)
Em uma meditação recolhida pelas carmelitas de quem era capelão, o bom e douto religioso Padre Gabriel de Santa Maria Madalena nos ajuda a compreender a beleza dso Evangelho de hoje.
No Evangelho de S. Lucas, ao sermão sobre a caridade seguem algumas aplicações práticas que delineiam a fisionomia dos discípulos de Cristo, os quais, como diz S. Mateus, devem ser “luz do mundo” (Mt 5,14).
Aos que não possuem antes esta luz, é impossível iluminar os outros. Daí a pergunta do Senhor, no santo Evangelho hoje proclamado: “Pode um cego guiar outro cego?” (Lc 6,39). A luz do discípulo não é fruto de sua perspicácia, mas sim da doutrina de Cristo, aceita e docilmente praticada, porque “o discípulo não é maior do que o seu mestre” (Lc 6,40). Somente na medida em que, vencendo a tentação da hipocrisia, acolhe e traduz na vida a doutrina e os exemplos do Mestre, até chegar a ser uma imagem viva dele, é que o cristão pode se tornar um guia luminoso para os irmãos e atraí-los a Cristo.
É um trabalho que compromete a vida num esforço contínuo para se tornar cada vez mais semelhante a Cristo. Isto requer um sereno e diuturno confronto da própria vida com a Palavra do Senhor. Espelhamento tal que permita conhecer os próprios defeitos para não cair na absurda falta de discernimento, na hipocrisia denunciada pelo Senhor: “Por que vês o argueiro que está no olho do teu irmão e não reparas na trave que está no teu olho?” (Lc 6,41).
Não aconteça que o discípulo de Jesus exija dos outros o que não pratica. Tampouco pretenda o discípulo corrigir no próximo o que, talvez duma forma mais grave, tolera em si mesmo. Combater o mal nos outros e não o combater no próprio coração, é hipocrisia, contra a qual manifestou o Senhor com enérgica intransigência. O critério para distinguir o autêntico discípulo do hipócrita são as palavras e as obras: “cada árvore se conhece pelo seu fruto” (ibid. 44). Já no Antigo Testamento o Espirito Santo havia ensinado que “o fruto mostra o cultivo da árvore, a palavra manifesta o que vai no coração do homem» (Eclo 27,7).
Jesus adota esta comparação já bem conhecida dos seus ouvintes e a desenvolve salientando que o mais importante é sempre o interior do homem, do qual brota todo o seu proceder. Assim como o fruto manifesta a qualidade da árvore, do mesmo modo as obras do homem mostram a bondade ou malícia do seu coração. Com efeito, diz o Senhor: “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro” (Lc 6, 45).
Nós sabemos que o hipócrita pode dissimular quanto quiser. Contudo, cedo ou tarde, o bem ou o mal que tem em si transborda e se manifesta, “pois a sua boca fala do que o coração está cheio” (ibid.). Eis, pois, aqui um ponto importante: deve guardar-se diligentemente o “tesouro do coração”, extraindo dele toda a raiz de maldade, e cultivar toda a espécie de bem, especialmente a retidão, a pureza e a reta e sincera intenção.
IV. «Graças sejam dadas a Deus, que nos dá a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo» (I Cor 15, 57).
Porém, é evidente que ao discípulo de Cristo não lhe é suficiente um coração naturalmente bom e reto. Ele necessita também dum coração renovado e modelado segundo os ensinamentos de Cristo, um coração totalmente convertido ao Evangelho.
Tal empenhamento é árduo, porque, no coração do discípulo, a tentação e o pecado estão continuamente à espreita. E nesse campo não convém lutar sem o auxílio celeste. A confiança na proteção dos anjos leva o discípulo sincero a pedir com o salmista: “Dai, Senhor, ordens aos Vossos anjos para me protegerem em todos os meus caminhos” (Sl 91,11).
O Apóstolo, ademais, procurando incutir-lhe ânimo, recorda que Cristo venceu o pecado e que a Sua vitória é garantia da vitória do cristão.
Eis porque rezamos com os santos, homens e mulheres revestidos do homem novo, configurados a Cristo, para encontrar êxito no combate, vitória nas batalhas espirituais e apostólicas.
[Rezemos com São João Crisóstomo:
Vós, ó Jesus, acendestes a luz e quereis que continue acesa. Fazei-nos vigilantes e cheios de zelo, não só para conosco, mas também para com os que… já chegaram por vossas mãos ao conhecimento da verdade. Fazei que a nossa vida seja digna da graça e da verdade que recebemos. E como a graça é pregada em toda parte, assim nossa vida prossiga ao lado da mesma verdade. Dissestes: resplandeça a vossa luz, ou seja, grande seja a vossa virtude, ardente a chama e inefável o esplendor. De fato, quando a virtude atinge esta elevada perfeição, é impossível ficar oculta… Nada faz tão luminoso o homem como o resplendor de suas virtudes, mesmo que absolutamente queira permanecer desconhecido (S. João Crisóstomo, Comentário ao Evang. de Mateus, 15, 7-8).
E com Santo Agostinho confessemos que necessitamos de Deus para estarmos perto dEle::
Assim como os montes, por si mesmos, não se irrigam, assim também não se iluminam por si mesmos… Em Vossa luz, ó Senhor, verei a luz. Se, portanto, veremos a luz na vossa luz, quem cairá longe da luz senão aquele para quem não sois luz? Se eu quiser ser minha própria luz, irei cair longe de Vós que me iluminais. Assim, sabendo que eu cai só quem quer ser sua própria luz – quando por si mesmo não passa de trevas – não me deixes obstinar no meu orgulho, nem me arrastem os exemplos dos pecadores… para não cair longe de Vós! (Santo Agostinho, In Ps 120, 5).]
* * *
Antes de concluir esta homilia, caros amigos, permitam-me transmitir uma mensagem que o Santo Padre, do hospital, preparou para nos falar brevemente do evangelho de hoje e para nos agradecer as orações pela sua saúde. Ouçamos o coração do Papa pulsando por nós, mesmo do leito da enfermidade.
Amados irmãos e irmãs:
No Evangelho deste domingo (Lc 6,39-45) Jesus faz-nos refletir sobre dois dos cinco sentidos: a vista e o paladar.
Relativamente à vista, pede-nos que treinemos os nossos olhos para observar bem o mundo e julgar o nosso próximo com caridade. Diz: “Tira primeiro a trave do teu olho, e então verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão” (v. 42). Só com este olhar de cuidado, e não de condenação, a correção fraterna pode ser uma virtude. Porque se não for fraterna não é uma correção!
Quanto ao paladar, Jesus nos lembra-nos que “cada árvore se conhece pelo seu fruto” (v. 44). E os frutos que provêm do homem são, por exemplo, as suas palavras, que amadurecem nos seus lábios, de modo que “a boca fala o que transborda do coração” (v. 45). Os maus frutos são as palavras violentas, falsas, vulgares; os bons são as palavras justas e honestas que dão sabor aos nossos diálogos.
E então podemos perguntar-nos: como olho para os outros, que são meus irmãos e irmãs? E de que modo me sinto olhado por eles? Minhas palavras têm bom sabor ou estão impregnadas de amargura e vaidade?
Irmãs e irmãos, volto a enviar-vos estas reflexões do hospital, onde, como sabeis, me encontro há vários dias, acompanhado por médicos e agentes de saúde, a quem agradeço a atenção com que cuidam de mim. Sinto no meu coração a “bênção” que se esconde na fragilidade, porque precisamente nestes momentos aprendemos ainda mais a confiar no Senhor. Ao mesmo tempo, agradeço a Deus por me ter dado a oportunidade de partilhar em corpo e espírito a condição de tantas pessoas doentes e sofredoras.
Desejo agradecer-vos pelas orações, que se elevam ao Senhor desde o coração de tantos fiéis de muitas partes do mundo: sinto todo o vosso carinho e a vossa proximidade e, neste momento particular, sinto-me como que “levado” e apoiado por todo o Povo de Deus. Obrigado a todos vós!
Eu também rezo por vós. E rezo sobretudo pela paz. Daqui [do hospital] a guerra parece ainda mais absurda. Rezemos pela atormentada Ucrânia, pela Palestina, por Israel, pelo Líbano, por Mianmar, pelo Sudão, por Kivu.
Recomendemo-nos com confiança a Maria, nossa Mãe. Bom domingo e até breve.