A MESA DA PALAVRA
VII Domingo do Tempo Comum – C
Itumbiara, 23 de fevereiro de 2025
“Amai os vossos inimigos” (Lc 6, 27)
Queridos irmãos e irmãs!
I. “Concedei-nos … praticar em palavras e ações o que vos agrada” (da Coleta)
Cada Santa Missa começa com um ato de confiança no amor compassivo do Senhor e, a seguir, com uma súplica confiante que orienta a nossa vida mediante a experiência do mistério pascal na mesa Eucarística.
Suplicando a Deus todo-poderoso que nos conceda “meditar sempre as realidades espirituais, e praticar em palavras e ações o que vos agrada” a Igreja, a família dos filhos de Deus se dispõe cumprir toda a vontade de Deus. Na meditação das realidades espirituais, descobrimos logo que o perdão e o amor aos inimigos agradam sumamente a Deus. O seu Filho Unigênito, pelo mistério pascal, nos torna capazes de chegar ao ápice do amor: amar os inimigos.
É preciso cuidar de nosso coração, evitando todos os sentimentos e ressentimentos incompatíveis com o amor compassivo de nosso Deus.
E se nos parece impossível chegar a amar e perdoar os inimigos como o fez o Senhor no alto da Cruz, oremos como Agostinho: “Senhor, dá-me o que pedes e pede-me o que quiseres” (Confissões, X, 29). Afinal, as Escrituras nos atestam que “é Deus quem opera em vós tanto o querer como o fazer, segundo o seu beneplácito” (Flp 2,13).
Deus que, embora nos tendo criado sem nós, não nos salvará sem o nosso consentimento (Agostinho, Sermo 169, 11, 13), pode suscitar em nós o querer e o fazer.
Assim hoje suplicamos a Deus que nos conceda que, meditando nos sagrados mistérios, cheguemos a praticar por palavras e ações o que Lhe agrada.
II. “Não o faças perecer” (ISam 26,9)
A primeira leitura nos ajuda a perceber o significado do perdão e da misericórdia. O Rei Saul perseguia o seu servo Davi simplesmente porque Davi cumpria lealmente o dever de soldado do rei. Ouvindo os elogios que as mulheres do reino faziam a Davi, Saul viu crescer em sua alma sentimentos ácidos de inveja e ciúmes: “Saul matou mil – gritavam –, Davi matou dez mil” (ISam 18,7). Isso levou o grande rei Saul a buscar os sortilégios, a cair na desobediência a Deus e no ódio a quem só lhe fazia bem. Assim acabou por perder a graça da eleição embora conservando a unção real.
Os sentimentos ácidos dos ciúmes foram envenenando a alma do Rei Saul levando-o a procurar matar Davi, obrigando-o a fugir. A primeira leitura nos mostra como Saul o persegue pessoalmente com seu exército até chegarem ao deserto de Zif. Numa das noites, todos os que se encontravam no acampamento do rei Saul foram tomados por um forte sono mandado por Deus. Davi e Abisaí puderam entrar no acampamento e encontraram o rei completamente desprotegido, prostrado no sono. Davi entra na tenda do Rei. Um de seus homens, Abisaí, o instiga a livrar-se da perseguição matando o rei. O futuro pastor de Israel não segue o conselho da prudência da carne. Por respeito à sagrada unção do rei Saul, poupou-lhe a vida. Não apenas doou uma nova oportunidade, mas perdoou, fez uma escolha de amor compassivo e levou a sua compaixão pelo rei à plenitude. O prefixo per em português indica sempre a plenitude do significado da palavra que precede. Assim perfeito é aquilo que é feito com excelência. Doar é oferecer algo, perdoar é oferecer máxima compaixão. Isso o fez Davi. Por amor a Deus agiu com compaixão em relação a um próximo, o seu Rei. Seguiu a máxima expressão do mandato de amar o próximo superando assim a lei do talião.
Aqui Saul é o próximo de Davi mas também o inimigo. Pensemos no exemplo dado por Jesus na parábola do bom samaritano. Samaritanos e judeus são inimigos. O samaritano da parábola que socorre o ferido caído por terra, doa o seu tempo, doa dos seus bens ao enfermo e pede ao estalajadeiro que cuide dele até a sua volta. Jesus se revela como o bom samaritano celeste. “Em sua vida terrena, ele passou fazendo o bem e socorrendo os que eram prisioneiros do mal. Ainda hoje, como bom samaritano, vem ao encontro de todos os que sofrem no corpo ou no espírito…” (Prefácio Comum VIII).
Eis porque a primeira leitura, mostrando Davi como tipo do Messias, nos ajuda a compreender o modo de agir de Jesus e a abrir o coração à mensagem evangélica do amor aos inimigos. Este é um remédio não utópico, mas real para os conflitos da humanidade.
III. “Amai os vossos inimigos”
Caros irmãos, a força da palavra evangélica proclamada hoje nos faz vislumbrar no amor ao inimigo pregado por Cristo o fundamento da não-violência cristã.
Vale a pena recuperar um discurso feito pelo papa Bento XVI, em 2007. A Praça de São Pedro estava cheia de peregrinos e romanos como de costume. Uma brisa moderada, que trazia consigo o frescor característico do inverno romano, completava um cenário que convidava à reflexão sobre a harmonia entre o ambiente natural e a paz do espírito humano. A temperatura daquele inverno era amena, por volta de 13 graus. O céu parcialmente nublado não ocultava totalmente o brilho do sol. Eis então que desponta na janela do Palácio Apostólico a figura gentil do Romano Pontífice para rezar o Angelus com o povo. Antes de iniciar a tradicional oração, Bento XVI ofereceu à Igreja uma breve e profunda reflexão sobre o amor ao inimigo, coração do evangelho de hoje:
«O Evangelho deste domingo – dizia ele com uma suave inflexão de sotaque bávaro – contém uma das palavras mais típicas e fortes da pregação de Jesus: “Amai os vossos inimigos” (Lc 6, 27). É tirada do Evangelho de Lucas, mas se encontra também no de Mateus (5, 44), no contexto do discurso programático que se abre com as famosas “Bem-Aventuranças”. Jesus pronunciou-o na Galileia, no início da sua vida pública: quase uma “declaração” apresentada a todos, com a qual Ele pede a adesão dos seus discípulos, propondo-lhes em termos radicais o seu modelo de vida. Mas qual é o sentido desta sua palavra? Por que Jesus pede para amar os próprios inimigos, isto é, um amor que excede as capacidades humanas? ».
O Papa Bento passa então a refletir oferecer a resposta evangélica a estas questões. «Na realidade, a proposta de Cristo é realista, pois considera que no mundo existe demasiada violência, demasiada injustiça, e, portanto, não se pode superar esta situação exceto se lhe contrapuser um algo mais de amor, um algo mais de bondade. Este “algo mais” vem de Deus: é a sua misericórdia, que se fez carne em Jesus e que sozinha pode “inclinar” o mundo do mal para o bem, a partir daquele pequeno e decisivo “mundo” que é o coração do homem».
E depois de mostrar que só a misericórdia de Deus feita carne é que se pode superar o caos da injustiça e da violência, ele nos ajuda a compreender a força transformadora do amor ao inimigo. «Exatamente esta página evangélica é considerada a magna charta da não-violência cristã, que não consiste em entregar-se ao mal segundo uma falsa interpretação do “oferecer a outra face” (cf. Lc 6, 29) mas em responder ao mal com o bem (cf. Rm 12, 17-21), quebrando dessa forma a corrente da injustiça. Então, compreende-se que a não-violência para os cristãos não é um mero comportamento tático, mas um modo de ser da pessoa, uma atitude de quem está tão convicto do amor de Deus e do seu poder, que não tem medo de enfrentar o mal somente com as armas do amor e da verdade. O amor ao inimigo constitui o núcleo da “revolução cristã”, uma revolução baseada não em estratégias de poder económico, político ou mediático. A revolução do amor, um amor que definitivamente não se apoia nos recursos humanos, mas é dom de Deus que se obtém confiando unicamente e sem reservas na sua bondade misericordiosa. Eis a novidade do Evangelho, que muda o mundo sem fazer rumor. Eis o heroísmo dos “pequenos”, que creem no amor de Deus e o difundem até à custa da vida».
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Queridos irmãos e irmãs, a Quaresma iniciará na quarta-feira após o carnaval com o tradicional e esperado rito das Cinzas. Abre-se um período favorável no qual todos os cristãos estão convidados a converter-se cada vez mais profundamente ao amor de Cristo.
Indo para as águas mais profundas da oração, escolhamos conscienciosamente que penitência fazer na quaresma para que seja desta vez um passo de mudança de vida. Para deixarmos de lado o homem velho e nos configurarmos ao homem celeste, nosso Senhor Jesus Cristo, o ressuscitado. Se inspirarmos nossas ações e orações em Jesus, seremos ressuscitados com Ele pela eternidade.
Se nos parecer impossível o amor ao inimigo, olhemos para Santa Rita de Cássia. Esta é a marca registrada de sua santidade. Certamente uniremos a intercessão dela à de Nossa Senhora., meiga discípula do Redentor, a quem pedimos que nos ajude a deixarmo-nos conquistar sem reservas por aquele amor, a aprendermos a amar como Ele nos amou, para sermos misericordiosos como é misericordioso o nosso Pai que está nos céus (cf. Lc 6, 36).
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!