A MESA DA PALAVRA
Dom José Aparecido Gonçalves de Almeida
MISSA DO DIA DE NATAL
Itumbiara, 25 de dezembro de 2024
“O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14)
Caros amigos,
A Noite Feliz viu o Filho do Eterno Pai revestido da fragilidade humana nascer das entranhas virginais de Maria Santíssima. De quanta delicadeza o Pai quis cercar este nascimento. Lá estavam José e Maria. Ó Noite venturosa, que viste por primeira o cumprimento das profecias!
Agora, sob o clarão do dia, podemos voltar os olhos para o Verbo que se fez carne e armou seus tabernáculos entre nós. Hoje é mais fácil compreender a oração das trindades, do Ângelus. O Anjo do Senhor anunciou a Maria e ela concebeu do Espírito Santo. Eis aqui a serva do Senhor, Faça-se em mim segundo a vossa Palavra. O Verbo de Deus se fez carne e habitou entre nós. Este responsório entremeado das palavras da Ave Maria nos introduzem no coração do Mistério do Natal. Este mistério era antes impensável. Agora nos parece impossível compreender a vida sem Jesus no centro da história humana, no centro de nossa história pessoal. Como é vazia a vida sem Jesus, sem o Emanuel, sem Deus conosco.
I. “… dai-nos participar da divindade do vosso Filho que se dignou assumir a nossa humanidade” (MR, Coleta).
A Encarnação do Verbo não é um capricho do Deus Uno e Trino para simplesmente para ostentar seu poder de realizar maravilhas impossíveis aos olhos humanos. A Trindade que opera admiravelmente ad extra na criação, cuja beleza foi depois maculada pelo pecado, agora se empenha ainda mais admiravelmente em restaurar a dignidade.
A coleta desta missa tem sua fonte no Sacramentário Gelasiano (século VI) e no Sacramentário Gregoriano (século VII-VIII). Por meio dela a Igreja louva a Deus pela maravilhosa ação redentora que restaura a beleza primeva da criação. E na sequência suplica ao bom Deus que nos conceda “participar da divindade do vosso Filho, que se dignou assumir a nossa humanidade”. Esta parte da oração nos remete diretamente a 2 Pd 1,4 em que o Príncipe dos Apóstolos diz que os fiéis são chamados a ser “divinae consortes naturae” (participantes da natureza divina). Este versículo é a base bíblica explícita da oração.
A oração, exemplar da profundidade espiritual da liturgia romana, unindo teologia, espiritualidade e adoração em uma fórmula sucinta e densa de significado, contém ecos do pensamento dos Padres da Igreja, especialmente a ideia central de que Deus assumiu a natureza humana para que o ser humano pudesse participar da natureza divina. Essa doutrina foi articulada, por exemplo, por Santo Atanásio em sua obra De Incarnatione Verbi (Cap. 54): “Ἐθεοποιήθημεν, ἵνα θεοποιηθῶμεν” (Deus se fez homem para que o homem fosse divinizado). O Verbo – sem deixar de ser Deus – se faz carne humana para consentir a divinização da nossa pobre natureza mortal mediante a graça.
E como não lembrar que em cada missa os sacerdotes, ao misturarmos umas gotas de água com o vinho a ser oferecido, suplicamos com as mesmas palavras que a nossa pobre natureza humana se torne, pela ação soberana da graça de Deus, participante da natureza divina: “Pelo mistério desta água e deste vinho, possamos participar da divindade do vosso Filho que se dignou assumir a nossa humanidade”. Esta oração é dita em voz baixa, pois pedimos algo grande demais para ser dito em voz alta. E Deus ouve esta oração.
II. “Todos os confins da terra hão de ver a salvação que vem do nosso Deus” (Is 42,10)
O nascimento de Jesus nos faz entender a beleza da profecia de Isaias. Nele se cumpre tudo. Nele nasce o novo Israel, o povo de Deus recebe a consolação e o Consolador.
Ele é o Príncipe da Paz. “Como são belos, andando sobre os montes, os pés de quem anuncia e prega a paz, de quem anuncia o bem e prega a salvação” (Is 52,7). Como são belos os pés de Jesus que sobre os montes anuncia e prega a paz. Mas como são belos os pés dos mensageiros que anunciam Jesus, nosso Bem, nossa Paz.
Não anunciamos uma grande ideia, um programa de valores, uma simples transformação das estruturas transitórias deste mundo. “Passa a figura deste mundo” (I Cor 7,31). Também os nossos pés são belos porque anunciamos muito mais do que um brilhante ideário ou um conjunto completo de valores éticos ou normas morais. Nós anunciamos uma Pessoa, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade que veio nos encontrar mediante a participação na nossa vida. “O que vimos e ouvimos isto vos anunciamos” (I Jo 1,3). Na pregação evangélica anunciamos Alguém com quem nos encontramos e que estabeleceu conosco uma grande amizade: “Já não vos chamo servos… mas a vós chamei-vos amigos” (Jo 15,15).
Tudo isto fora anunciado desde os tempos do Profeta Isaias como consolação, como salvação. Lendo o texto completo da profecia de Isaias não podemos deixar de pensar grandeza da verdade sobre o mistério do Deus Pai, Filho e Espírito Santo: “De fato, Deus amou tanto o mundo, que deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou seu Filho o mundo, não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 13,16-17). De fato, o Senhor Jesus é para nós salvação e consolação.
É ele o Deus que sustenta o universo com o poder de sua palavra e, ao entrar no mundo, o Pai diz a respeito dele: “Todos os anjos devem adorá-lo” (Hb 1,6). E ao adorá-lo no Presépio, os anjos uniram a criação e a humanidade na adoração: Glória in excelsis Deo….
III. “Veio o Senhor de todos sob a forma de servo” (Teódoto de Ancira, Bispo e mártir do sec. V)
Retomo aqui um trecho esplêndido de uma antiga homilia pronunciada no século V, numa noite de Natal pelo Bispo Teódoto de Ancira. Ouçamo-la com desejo ardente de ser iluminados pela luz do Verbo de Deus feito carne.
Veio o Senhor de todos sob a forma de servo, revestido de pobreza, de modo a não afugentar os que buscava. Em terra incerta, escolhendo um lugar desconhecido para nascer, foi dado à luz por uma Virgem pobre, na pobreza total, para que pelo silêncio cativasse os homens que vinha salvar. Pois se tivesse nascido na glória, rodeado de muitas riquezas, diriam, sem dúvida, os infiéis que a transformação da terra fora obra do dinheiro. Se tivesse escolhido Roma, a maior cidade, atribuiriam ao poder dos seus cidadãos a mudança do mundo. Se fosse filho do imperador, atribuiriam ao poder tal benefício. Se fosse filho de um legislador, atribui-lo-iam às leis.
Mas que fez ele? Escolheu tudo o que é pobre e vil, tudo o que há de mais medíocre e obscuro, para sabermos que só a divindade transformou a terra. Por isso, escolheu uma mãe pobre, uma pátria ainda mais pobre, fazendo-se pobre dos bens terrenos. Isto te é mostrado no presépio. Como não havia um berço para reclinar o Senhor,(Ele) foi colocado numa manjedoura, e sua indigência das coisas mais necessárias tornou-se uma ótima profecia. Foi assim posto numa manjedoura para anunciar que se fazia alimento até mesmo dos irracionais. Pois o Verbo, Filho de Deus, nascendo pobre e jazendo num presépio, atrai para si os ricos e os pobres, os eloquentes e os incultos (os magos e os pastores).
Vede, portanto, como a indigência se tornou profecia e a pobreza mostrou ser acessível a todos aquele que por nós se fez pobre. Ninguém se deteve por medo das esplêndidas riquezas do Cristo, nem a imponência do poder impediu alguém de se aproximar dele; mas apareceu pobre e comum, oferecendo-se a si mesmo para salvar a todos.
[Irmãos,] No presépio, o Verbo de Deus se manifesta corporalmente a fim de que tanto os seres racionais como os irracionais possam participar do alimento da salvação. Penso ser isto que o profeta proclamava, quando falava do mistério do presépio: “O boi conhece o seu dono, e o jumento, a manjedoura de seu senhor; mas Israel é incapaz de conhecer, o meu povo não pode entender” (Is 1,3). Fez-se pobre por nós aquele que é rico, tornando facilmente perceptível a todos a salvação do Verbo de Deus. Também Paulo o indica, ao escrever: “Por causa de vós se fez pobre, bem ora fosse rico, para vos enriquecer com a sua pobreza” (II Cor 8,9).
Mas quem era esse que enriquecia? E de que enriquecia? Como ele se fez pobre por nós? Quem é, dizei-me, que, sendo rico, se fez pobre por minha pobreza? Pensais que foi o homem que apareceu? Mas este nunca se tornou rico, o nascido que foi pobre e de pais pobres. Quem era, pois, e de que enriquecia esse rico que por causa de nós se fez pobre?
A única resposta, irmãos, é a seguinte: Deus enriquece a criatura. Foi Deus mesmo quem se fez pobre, fazendo sua a pobreza daquele que se podia ver. Pois ele é rico pela divindade, e por causa de nós se fez pobre.
Nesta Santa Missa de Natal dirijamo-nos ao Senhor. Que o Verbo eterno alegre o nosso coração com a graça de sua visita. Ele que é o Salvador do mundo, nos ajude a cumprir com fidelidade as promessas do Batismo. Sendo Rei do céu e da terra, envie os seus anjos para anunciar a paz aos homens em nossos dias. Ele que é a videira verdadeira nos faça permanecer unidos a Ele e a dar frutos de santidade e de apostolado. Ele que é compassivo e misericordioso, nos faça peregrinos da esperança no jubileu de 2025, para nos tornamos participantes da natureza divina daquele que assumiu a nossa humanidade.
A Virgem Mãe, que com sua divina maternidade encheu o mundo da alegria do Natal de seu Filho, seja sempre para nós “Causa da nossa Alegria”.
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.