A MESA DA PALAVRA
Dom José Aparecido Gonçalves de Almeida
DOMINGO DE PENTECOSTES
Missa do Dia 19 de maio de 2024
“E une numa só fé a diversidade das raças e línguas” Caríssimos amigos, I. “Ó Deus, que pelo mistério da festa de hoje santificais a vossa Igreja inteira, em todos os povos e nações, derramai por toda a extensão do mundo os dons do vosso Espírito Santo, e realizai agora, no coração dos que creem em vós, as maravilhas que operastes no início da pregação do Evangelho” (Coleta da Missa do Dia).
Esta coleta é rezada na liturgia Católica desde os primeiros séculos, fixada já no século V no Sacramentário do Papa Gelásio, retomado no Gellonense (séc. VIII), no Gregoriano (Sec. VIII) e em outros eucológios, ainda que com levíssimos retoques. Na sobredita oração, nossa comunidade reunida em oração – como estavam em Jerusalém – bendiz o nome do Senhor porque o mistério hoje celebrado continua a santificar a Igreja presente em todos os povos e nações. Ao mesmo tempo pede que Deus, ao derramar os dons do Espírito Santo pelo mundo inteiro, renove ainda as maravilhas operadas no início da pregação do Evangelho. Aqui se vê claramente que a Igreja sempre viu – e rezou – a unidade entre a efusão do Espírito Santo, dom de Deus, e o exercício do seu múnus de ensinar. A pregação do Evangelho só é eficaz enquanto movida pelo milagre de Pentecostes.
De fato, víamos no Evangelho da missa da Ascensão que nas suas aparições aos discípulos, o Ressuscitado lhes falou do Reino de Deus e deu aos Apóstolos que Ele tinha escolhido “instruções pelo Espírito Santo”. Só então lhes conferiu o mandato missionário e lhes deu os poderes necessários para ensinar com autoridade.
No entanto, foi somente ao subir ao Céu e derramar o Espírito Santo no dia da festa das Semanas ou Pentecostes, que os Apóstolos ganharam a valentia apostólica que antes parecia não existir neles. Então tudo o que o Jesus lhes havia prometido apareceu: pregação com autoridade, dom de línguas, orgulho de ser espancados por causa do Nome.
Pentecostes não é uma efeméride meramente comemorativa. É um permanente estado da Igreja que avança na história movida pelo Espírito, anunciando a Boa-Nova do Reino até que o Senhor volte cercado de majestade, para julgar os vivos e os mortos.
II. “… todos nós os escutamos anunciarem as maravilhas de Deus na nossa própria língua!” (At 2,11) A festa de Pentecostes evoca um costume bem arraigado na cultura e inserido no calendário litúrgico do povo da primeira Aliança: cinquenta dias após a celebração da Páscoa, época de colheita da cevada, vinha a colheita do trigo, o povo de Deus não se esquecia de celebrar a festa hebraica das Semanas, da Colheita ou das Primícias. Pentecostes – que significa precisamente cinquenta dias – foi o nome que prevaleceu após o domínio grego. Após ter oferecido o cordeiro na Páscoa, os judeus ofereciam uma porção dos primeiros grãos colhidos. Em Pentecostes, o envio do Espírito Santo dá início à grande saga da evangélica semeadura. Na pregação inicial se colher e se entregam a Deus as primeiras sementes, os primeiros grãos da fecunda estação evangelizadora iniciada com a efusão do Espírito Santo sobre Maria Santíssima e os Apóstolos.
Mas a festa cristã evoca um outro episódio relatado no Gênesis: o episódio de Babel. Em Babel as línguas se confundiram, ao tentarem os homens construir sem Deus uma torre para chegar ao céu. De fato, aqueles construtores não edificavam a cidade e a torre com pedras. As pedras se encontram na natureza, são obras saídas das mãos de Deus. Eles queriam confeccionar tijolos com as próprias mãos. Na soberba de querer fazer tudo sem Deus, a unidade da linguagem se perde, advém a confusão das línguas, a desordem do coração e as rupturas de unidade, já não se consegue viver sem conflitos. Em Pentecostes, movidos pelo vento galhardo, acalentados pelo calor das línguas de fogo, reunificados na caridade e na comunhão, voltamos a falar a mesma linguagem, não obstante falemos línguas distintas. Os dons sobrenaturais a que se refere Jesus no mandato missionário, tais como o dom da oração jubilosa em línguas ou o de falar em línguas estranhas, se orientam para a edificação pessoal e, com o auxílio de irmãos que têm o carisma da interpretação, para a edificação do corpo de Cristo mediante o testemunho da Palavra.
A nossa experiência de Babel se dá também entre nós. Não foge a ninguém o exemplo da polarização político-ideológica que foi ocasião da instilação do ódio e de rancores entre pessoas que se queriam bem. Falando a mesma língua portuguesa, começamos a empregar linguagens que nos afastavam da comunhão e de qualquer possibilidade de diálogo. Até mesmo o santo Nome de Deus acabou sendo usado junto representações idolátricas (imagens falsas do verdadeiro Deus, ou imagens verdadeiras de falsos deuses) do bom Senhor. Com o dom do Espírito Santo – não são apenas sete, são infinitos, é um só o mesmo Espírito que se nos oferece em Dom incriado –, com este precioso dom somos curados dos venenos instilados pela antiga serpente e nos tornamos de novo capazes de nos querer bem uns aos outros, mesmo tendo ideias e projetos de vida diferentes. Em tudo o que é opinável somos livres e amamos a liberdade dos irmãos que têm diferente visão de mundo. É preciso reevocar o milagre de Pentecostes para que não se repita a confusão das línguas e das linguagens entre nós.
Neste tempo especial, voltamos a falar a mesma linguagem porque Deus está presente entre nós. O vento galhardo de Pentecostes sopra a poeira do pecado que anuvia nossos olhos, nos envia as línguas de fogo para que arda o nosso coração enquanto o Senhor nos fala pelo caminho. O Senhor subiu aos céus, enviou o Paráclito e permanece entre nós na Palavra e na Eucaristia, até o fim dos tempos.
Como dizia domingo passado, “o Batismo com o Espírito Santo conferia à Igreja nascente uma pujante empresa missionária, com respiro universal. O mesmo Espírito passará por aqui, também entre nós, para renovar a face da terra, dando-nos o dom de línguas para que o Evangelho, a BoaNova do Ressuscitado chegue com poder de transformação a todos os corações, a todas as realidades da terra”.
Efetivamente hoje o Espírito Santo passa por aqui com seu poder transformador. Mas para que participemos desta renovação de tudo em Cristo, é preciso abrir-lhe as portas do coração, das realidades temporais, as portas da nossa existência pessoal e comunitária. E Ele, que não costuma arromba portas, entre irá entrar como como convidado muito bem-vindo. Nós o recebemos com amor e nos entregamos ao Seu santo serviço: “Na comunhão recebemos o Espírito Santo, e vem contigo, Jesus, o Teu Pai Sacrossanto. Vamos agora ajudar-Te no plano da salvação: Eis aqui os Teus servos, Senhor” (Dom Carlos Alberto Navarro).
Este tempo, vale a pena repetir, continua na Igreja. A maravilhosa ação do Espírito Santo continua a dar frutos de vida, apostolado e santidade na Igreja e no mundo.
III. “A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum” (I Cor 12,7)
Pentecostes é a “inauguração” oficial da Igreja una, santa, católica e apostólica. Foram muitos e seguidos atos realizados por Jesus em que aparecem sinais vivos da sua vontade fundacional. Mas após lançar o fundamento na Páscoa, com a ceia e com o mistério da sua oblação, ele nos torna participantes da obra de edificar a casa de oração de todos os povos, a sua santa Igreja, o seu novo povo. E ao enviar o Espírito Santo, Deus quis ornar a sua Igreja com muitos dons que fazem dela a Esposa sem mácula, pela qual ele se entrega.
Sobre a missão do Espírito Santo na Igreja, ouçamos uma vez mais as palavras inspiradas do Concílio Vaticano II:
Em primeiro lugar é a alma da Igreja, o santificador. “Terminada na terra a obra que o Pai confiou ao Filho, o Espírito Santo foi enviado no dia de Pentecostes a fim de santificar continuamente a Igreja e, por Cristo, no único Espírito, terem os fiéis acesso junto ao Pai. Ele é o Espírito da vida, a fonte de água que jorra para a vida eterna. Por ele, o Pai dá vida aos homens mortos pelo pecado, até ressuscitar em Cristo seus corpos mortais”.
Ele é o artífice da unidade multicor da Igreja: “O Espírito habita na Igreja e nos corações dos fiéis como em um templo. Neles ora e dá testemunho da adoção de filhos. Conduz a Igreja ao conhecimento da verdade total, unifica-a na comunhão e nos ministérios, ilumina-a com diversos dons carismáticos e hierárquicos e enriquece-a com seus frutos”. Assim o Espírito Santo inspira a organização da comunidade cristã na variedade de dons e de serviços.
O Espírito Santo é, ademais, a fonte da perene juventude da Igreja: “Pela força do evangelho, rejuvenesce a Igreja, renovando-a constantemente e a conduz à perfeita união com seu Esposo. Pois o Espírito e a Esposa dizem ao Senhor Jesus: ‘Vem!’”.
Pela Sua força vivificante o Espírito ensina à Igreja que ela se torna sacramento da unidade do gênero humano: “Assim se apresenta a Igreja inteira como um povo reunido pela unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.
Além disso, a presença permanente do Espírito Santo na Igreja garante aos batizados, a graça da infalibilidade in credendo dos fieis unidos na Sua Unção: “O conjunto dos fiéis, consagrado pela unção do Espírito Santo, não pode enganar-se na fé. Esta peculiaridade se exprime através do sentido sobrenatural da fé, quando na sua totalidade, a hierarquia e os fiéis leigos, manifestam um consenso universal em matéria de fé e costumes”.
E o mesmo Espírito Santo, garante como dom aos fiéis o magistério infalível confiado aos sagrados pastores unidos pelos laços da comunhão colegial a Pedro, garante da unidade que nos confirma na verdadeira fé. No domingo passado, tive ocasião de lembrar que “todo o Novo Testamento testemunha como a comunidade nascente, fiel às moções do Espírito, guarda o depósito da fé e se organiza para que esta fidelidade permaneça no tempo. O Senhor prometera que as portas do inferno não prevaleceriam sobre a Igreja. Ele mesmo a dotou do ministério apostólico dos Doze que a estruturam como novo Povo de Deus” (Homilia da Festa da Ascensão).
“Com este senso de fé, formado e sustentado pelo Espírito da verdade, o povo de Deus, guiado pelo sagrado magistério a que obedece com fidelidade, acolhe não mais como palavras dos homens, mas, na realidade, a palavra de Deus, e adere sem esmorecimento à fé que, uma vez para sempre, foi transmitida aos santos (Jd 3). Nela penetra sempre mais profundamente, com reto julgamento, e cada vez mais plenamente a põe em prática em sua vida”.
Mas não é tudo. O mesmo Espírito Santo, por meio dos sacramentos e ministérios, “não apenas santifica e conduz o povo de Deus e o adorna com virtudes, mas ainda distribui a cada um seus dons conforme quer (1Cor 12,11), e concede também graças especiais aos fiéis de todas as condições. Torna-os assim aptos e disponíveis para assumir deveras obras ou funções, em vista de uma séria renovação e mais ampla edificação da Igreja, conforme foi dito: A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum (1Cor 12,5).
Enfim, os padres conciliares, movidos por uma particular unção espiritual, exortam os fiéis a acolher os dons carismáticos com profundo sentimento de gratidão. “Estes carismas – diz o Espírito à Igreja – devem ser recebidos com ação de graças e consolação. Pois todos, desde os mais extraordinários aos mais simples e comuns, são perfeitamente apropriados e úteis às necessidades da Igreja”.
IV. “Assim como o Pai me enviou eu também vos envio: Recebei o Espírito Santo!” (Ef. 4,1).
O grande acontecimento iniciado naquele dia da Festa judaica de Pentecostes dá ao colégio apostólico um novo frescor no seguimento de Jesus, simbolizado no vento galhardo que soprou dentro daquela sala. As línguas de fogo, símbolo da presença do Amor do Pai e do Filho, insuflam nos corações dos Apóstolos escolhidos por Jesus um ardor e uma coragem nunca dantes experimentados. Jesus lhes havia prometido e eles O esperavam. O Espírito Santo é a força interior que está latente em toda a Bíblia, desde a Criação, mas que se faz presente em Pentecostes graças à promessa de Cristo.
Não sem razão nos lembrava São Leão Magno no sermão 77: “Caríssimos, a festividade hodierna, celebrada em todo o mundo, foi consagrada à vinda do Espírito Santo, descido, como haviam esperado, sobre os Apóstolos e o povo fiel cinquenta dias após a Ressurreição. Era esperado porque o Senhor Jesus o havia prometido, não como se Ele tivesse então de começar a morar nos santos, mas para acender de maior fervor os corações a Ele consagrados e inundá-los mais copiosamente acrescendo os seus dons, não começando, portanto, uma obra nova pelo fato de ser mais generoso no seu doar-se”.
O Espírito infunde nos discípulos e na Igreja nascente os seus dons para anunciar a Boa-Nova de Jesus, para os preservar na verdade, para dispô-los a ser Suas testemunhas, para ir, batizar e ensinar a todos os povos. O envio missionário, portanto, impele os Apóstolos a sair, a pregar e anunciar a Boa-Nova com santo temor, sabendo que “é preciso obedecer antes a Deus do que aos homens”, mas também sem medo nem sequer de ser presos e espancados pelos perseguidores. A piedade filial acompanhada de grande fortaleza, torna o Evangelho atraente a todos os que ouviam a pregação apostólica.
Assim o Espírito continue a derramar sobre nós “aqui reunidos como estavam em Jerusalém” para anunciarmos até aos confins da terra o grande amor com que Deus nos amou, escolheu e nos quer levar para a Sua casa no Reino definitivo.
Regina coeli, laetare aleluia!